Economia
O juro neutro: uma abordagem talmúdica
O estudante levantou a mão e perguntou: “Rabi, é verdade que um judeu sempre responde a uma pergunta com outra pergunta?”. Ao que o velho mestre, pensativo, retrucou: “Oy, e quem foi que te disse isso?”.
À parte desejar há muito usar esta anedota num artigo, a verdade é que mais de uma vez enfrentei a questão sobre a necessidade de altas taxas de juros no Brasil respondendo à pergunta com outra. Quando indagado por que a taxa de juros é mais alta no Brasil do que em outros países, minha resposta geralmente envolve perguntar por que, apesar de taxas de juros tão altas, a demanda interna tem um desempenho tão vigoroso?
De fato, nos últimos seis anos o crescimento médio do PIB superou em pouco o ritmo de 4% ao ano, ritmo decente, mas longe de empolgante. Por outro lado, a demanda interna se expandiu a uma velocidade de 5,5% ao ano, enquanto seu componente privado (consumo e investimento), mais sensível à taxa de juro, avançou a um ritmo superior a 6% ao ano!
Se é verdade, pois, que a taxa de juros no Brasil é uma anomalia à luz da experiência internacional, não é menos anômala a resposta robusta da demanda interna a taxas de juros que em qualquer outro país produziriam uma contração escatológica. Assim, se conseguirmos responder à segunda pergunta, teremos também a solução da primeira.
Parte da resposta – talvez não a mais importante – se reflete na baixa taxa de poupança brasileira, que nos últimos anos ficou em torno de 17,5% do PIB. Na comparação com 2002-03 a poupança aumentou em cerca de 1,5% do PIB, apesar de ganhos extraordinários de termos de troca no período, que estimo terem chegado a quase 4% do PIB. Portanto, a maior parte do ganho oriundo do aumento do preço de commoditiesse transformou em gasto adicional, refletindo um modelo de crescimento que privilegia o consumo, financiado pela expansão das transferências governamentais e do crédito.
Isto dito, se tomarmos duas economias idênticas, exceto pela presença de estímulos governamentais ao consumo, deve ser claro que a taxa de juros terá que ser maior na economia com incentivos governamentais.
De fato, caso a taxa real de juros fosse igual nas duas economias, seu desempenho inflacionário seria muito distinto. Por um lado a demanda interna cresceria mais na economia com incentivos. Por outro, refletindo a menor taxa de poupança e, portanto, investimento (já que há limites aos déficits externos), o crescimento potencial desta economia também seria menor do que o de sua gêmea. Para manter a inflação estável, portanto, tal economia teria que conviver com uma taxa de juros mais elevada. Quão mais elevada ainda permanece um mistério.
Já a parte que acredito mais interessante e promissora da resposta ao enigma do forte desempenho da demanda interna face a taxas de juros muito elevadas está relacionada à definição da taxa de juros relevante para o caso brasileiro.
Em geral, ao compararmos a taxa brasileira às observadas em outros países pensamos na taxa Selic (ou na taxa de 1 ano) como sendo a única taxa relevante. Todavia, existe um segmento do mercado de crédito no Brasil que é virtualmente insensível à taxa de juros de mercado. O crédito direcionado no Brasil – que inclui o BNDES, assim como o crédito habitacional e rural – apresenta taxas de juros que não apenas não são afetadas pela operação da política monetária, como são usualmente bastante inferiores à Selic, em particular a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP).
Adicionalmente, apesar da expansão vigorosa do crédito livre nos últimos 2 anos (cerca de 20%, descontada a inflação), o direcionado cresceu ainda mais rápido (40% acima da inflação). Desta forma, o direcionado representa algo como 36% do crédito total no Brasil, comparado a 28% em meados de 2008, longe, portanto, de ser um fenômeno marginal, mas sim parcela elevada e crescente do crédito no Brasil. Aliás, diga-se de passagem, tal parcela está em vias de se tornar ainda mais relevante, dado que o BNDES deverá ter algo como R$ 65 bilhões à sua disposição (R$ 20 bilhões de 2011 mais R$ 45 bilhões anunciados recentemente), equivalente a 15% de sua carteira de empréstimos.
Há, portanto, um estímulo considerável advindo do crédito direcionado. Não é necessário um grande salto de imaginação para concluirmos que, sob estas condições, o efeito da Selic sobre a demanda é menor do que seria na ausência do direcionado, ou seja, tudo o mais constante, para o BC obter o mesmo crescimento da demanda doméstica que obteria na ausência do direcionado será obrigado a uma taxa de juros mais alta.
Similarmente, como as taxas do direcionado não se alteram em resposta à Selic, para responder a eventuais choques que elevem a inflação esperada, o BC será também forçado a movimentos maiores de taxas de juros do que os requeridos na ausência do direcionado para adequar sua política.
À luz deste raciocínio, a existência de um mercado segmentado de crédito, em que as taxas de juros são consideravelmente inferiores às de mercado, se afigura como uma explicação para o vigor da demanda interna mesmo sob taxas de juros consideravelmente maiores que as internacionais. E, em assim sendo, é também a explicação mais promissora para a persistência de tal diferença.
Se tais hipóteses – mais complementares que substitutas – são verdadeiras, que políticas seriam necessárias para trazer a taxa real de juros de equilíbrio do país a níveis patamares próximos aos internacionais?
Em primeiro lugar a redução do consumo público. Segundo os dados do International Comparison Program (ICP) o Brasil apresenta o segundo maior nível de gasto público em relação ao PIB entre países com PIB superior a US$ 100 bilhões, fato que, sem dúvida, desempenha papel central na explicação da reduzida poupança interna.
Em segundo lugar o crédito direcionado teria que sofrer alterações consideráveis. Não seria necessário eliminá-lo, mas os subsídios implícitos em suas taxas de juros teriam que ser extintos, por exemplo, balizando estas taxas pelo custo local de captação de longo prazo do Tesouro Nacional, conforme a formulação original da TJLP. As taxas do direcionado subiriam, mas Selic cairia, beneficiando o universo de tomadores “mortais” (Tesouro inclusive), às custas dos “imortais” tomadores de recursos subsidiados.
Noutro Universo, talvez esta conclusão bastasse para que tal política fosse adotada. Neste, pelo contrário, é sinal que esta mudança deve ser ainda mais improvável que a redução do consumo público. E que, portanto, apesar dos protestos do BC, a taxa de juros de equilíbrio no Brasil continuará entre as mais altas do mundo.
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- E qual taxa de juros brasileira é a mais alta do mundo? |
(Publicado 2/Mai/2012)
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