Economia
Uma verdadeira proposta rudimentar
Parece haver uma crença generalizada acerca da existência de um almoço gratuito no atual arranjo de política monetária e fiscal no Brasil: bastaria cortar a taxa de juros para que o problema fiscal brasileiro fosse automaticamente resolvido. Como o custo da dívida pública gira em torno de 7,5% do PIB ao ano, sua redução para, digamos, 4% do PIB, “geraria” recursos de sobra para os investimentos urgentes em infra-estrutura, educação, saúde e, já que tocamos no assunto, um pouco mais de gasto corrente, que, afinal de contas, no entender de gente graúda, “é vida”.
Este raciocínio é, porém, rudimentar, para pegar emprestado adjetivo usado há não muito tempo. A carga tributária atingiu 37% do PIB no ano passado e, como o superávit primário de União, estados e municípios ficou próximo a 4% do PIB, a conclusão inescapável é que o gasto primário do setor público não pode ter sido inferior a 33% do PIB. Reduzir o juro para gastar a diferença implica, de fato, aumentar a participação do governo no produto. Não haveria “geração” mágica de recursos; apenas um aumento da fração do PIB absorvida pelo governo.
Uma variante desta proposta sugere apenas a queda do juro a fim de reduzir o déficit público (e, portanto, a dívida), objetivo sem dúvida meritório, mas que também parte do pressuposto que a taxa de juros não desempenha qualquer outro papel na economia que não o de encarecer a dívida pública (por sadismo, na melhor das hipóteses) e que, desta forma, poderia ser reduzida de forma brusca sem conseqüências para o restante da economia.
Este pressuposto é falho: mesmo que a Selic fosse reduzida à metade, o gasto primário e a carga tributária permaneceriam nos atuais patamares, senão em outros ainda mais altos. A disponibilidade de recursos para o investimento privado continuaria sendo limitada pela parcela do produto apropriada pelo governo e os efeitos negativos da imensa tributação sobre seu retorno ainda estariam presentes.
Não haveria, portanto, porque esperar uma aceleração fenomenal do investimento em resposta à queda da taxa de juros. O incentivo para investir, tudo o mais constante, provavelmente aumentaria, mas esta consideração captura apenas o lado da demanda por investimento; restaria saber se haveria oferta de recursos para suprir esta demanda adicional. A resposta é não, pois os recursos para investimento ainda teriam que sair dos 67% do PIB que sobram para o setor privado após o governo tomar sua parte.
A rigor o problema é ainda mais sério, pois em resposta à queda da taxa de juros toda a demanda privada, tanto consumo quanto investimento, cresceria, sem, todavia, expansão correspondente da oferta, a menos que (1) houvesse hoje uma subutilização maciça de recursos no país, o que está longe de ser verdade, como revelam, por exemplo, as medidas de utilização de capacidade instalada; ou (2) o governo reduzisse sua participação no PIB, cortando decisivamente seus gastos, o que também parece estar fora do reino das possibilidades, ainda mais à luz de declarações recentes do presidente e seus ministros.
Assim, se a taxa de juros não desempenhar o papel de fazer a demanda privada se ajustar à parte que lhe cabe do PIB depois do governo tomar sua parcela, outras forças o farão: ou a inflação se acelera para reduzir a demanda doméstica (por meio da queda do salário real), ou a taxa real de câmbio se aprecia para reduzir o superávit em conta corrente e permitir o crescimento da demanda doméstica (ou uma combinação de ambas). Obviamente, caso ao afrouxamento forçado da política monetária se seguisse ainda um aumento do gasto público, conforme a proposta inicial, o problema acima seria adicionalmente agravado.
A verdade é que enquanto o governo continuar se apropriando de um terço (ou mais) do PIB a taxa de juros consistente com a inflação sob controle permanecerá elevada. Só quando o problema do elevadíssimo gasto primário for atacado de forma consistente é que taxas de juros poderão cair para níveis internacionais. Manipular a taxa Selic para justificar aumento adicional do gasto público no Brasil só resultaria em inflação mais elevada sem alterar a capacidade de crescimento de longo prazo. Realmente, a falta de entendimento dos rudimentos de economia só poderia resultar numa proposta rudimentar.
(Publicado 13/Dez/06)
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