Delfim Netto: Receita para o caos - Valor Econômico
Economia

Delfim Netto: Receita para o caos - Valor Econômico




Houve novidade na última semana? Nenhuma! Talvez apenas a confirmação que a "racionalidade" dos agentes no mercado é a mesma dos carneiros de Panurge, o célebre personagem criado por Rabelais: tendo sido um deles jogado ao mar, foi fielmente seguido pelos outros. O mercado é a "manada". É a "imitação". É o contágio. É a busca da segurança na insegurança: todos seguem todos, supondo que o vizinho sabe o que está fazendo. Aliás, foi aquele o exemplo dado pelo maior matemático do século XIX, Henry Poincaré (1854-1912), para não dar o grau máximo à tese de Louis Bachelier, o criador da economia financeira, cujo elegante modelo supunha que o comportamento dos agentes fosse independente...

O fato lamentável é que o "mercado em geral" deixou de observar o único mercado em que a possibilidade de um "default" dos EUA seria visível: o próprio mercado dos títulos do Tesouro! Como de costume, o Tesouro continuou vendendo semanalmente (até a última semana de julho), cerca de US$ 80 bilhões de papéis com vencimento de 30 dias, um ano e dois anos (com demanda igual a quatro vezes o total vendido) e com taxa de juros declinante. Esse é o claro fato que nele sempre se considerou um evento de probabilidade nula (ainda que não impossível): os EUA, depois de 250 anos de construção da maior credibilidade do mundo, virem a reconhecer um "default" no cumprimento de obrigações com relação a sua dívida pública.


Não pode haver dúvida. Os EUA estão diante de grave problema: a ocasional disfuncionalidade da sua administração política. O Congresso, dominado por radicalismos, tem dificultado fortemente uma ação adequada do Executivo. A discussão farsesca sobre a ampliação do teto da dívida americana que perturbou todos os mercados (menos o dos próprios títulos da dívida como mostramos acima!) é um sinal daquela disfuncionalidade que aumentou de forma irresponsável a volatilidade de todas as economias do mundo. Ao mesmo tempo, ajudou a ampliar as incertezas sobre a solvência de alguns países da Eurolândia. Infelizmente, esses fazem parte de uma comunidade que, seguramente, não é uma área monetária ótima, não tem mecanismo de controle efetivo sobre as finanças de cada participante e seu Banco Central está mais perplexo e dividido internamente do que o Fed.

Para encurtar uma longa história é preciso reconhecer que a única solução para esses problemas é uma aceleração do crescimento econômico contra o qual, infelizmente, conspiram: 1º) as políticas contracionistas impostas a alguns países; e 2º) a falta de coordenação capaz de impor, pelo ajuste negociado das taxas de câmbio, um reequilíbrio do comércio mundial.

Para o mundo em recessão, a disputa entre as sugestões "neoclássicas" e as "keynesianas" são completamente irrelevantes, uma vez que é visível e palpável o imenso desemprego e a redução do uso do capital físico. Obviamente o que lhes falta é demanda global, isto é, a soma da demanda privada com a pública. A primeira encolheu diante das amargas consequências da imensa patifaria do sistema financeiro, feita sob os olhos complacentes dos governos que estimularam a destruição da regulação produzida nos anos 30 (criada em resposta às mesmas safadezas feitas pelo mesmo sistema financeiro e repetidas nos anos 90). A causa básica da redução da demanda foi a destruição do "circuito econômico" produzido pelo colapso instantâneo do sistema financeiro, resultado da miopia com que foi tratado o problema do Lehman Brothers.

Não é preciso ser macroeconomista para saber que a única forma de manter a demanda global, em tal circunstância, é ampliar a demanda pública, que é o remédio keynesiano. É preciso insistir que o aumento da demanda pública (pela ampliação do gasto) pode ser eficaz para ampliar o uso dos recursos "desempregados" pela queda da demanda do setor privado se, e unicamente se, estimular um aumento do consumo ou do investimento do próprio setor privado. O problema com um certo keynesianismo é esquecer Keynes. O resultado final do aumento da demanda pública só será funcional se alterar as "expectativas" do consumidor (que vê - no futuro opaco - a possibilidade de encontrar emprego) e recuperar o espírito animal do investidor (que vê - no futuro opaco - o renascimento da demanda).

O famoso "multiplicador" dos gastos públicos depende do "estado de espírito" dos agentes econômicos e só pode ser conhecido "a posteriori". É até possível obter uma ampliação do crescimento com uma redução do gasto público ou dos impostos (multiplicador negativo!) em condições excepcionais de "expectativas". A política funcionou muito mal nos EUA e na Europa porque os governos foram incapazes de cooptar a confiança do setor real das suas economias, aquele que emprega e investe. Protegeram o setor financeiro criador da desgraça (da qual eles mesmos foram coadjuvantes) e foram incapazes de restabelecer a confiança necessária ao pleno funcionamento do "circuito econômico".

É por isso que a receita neoclássica de mais "aperto" fiscal e mais aumento de impostos é um equívoco. Não pode levar a lugar nenhum porque não estimulará o uso dos recursos "desempregados" na aceleração do crescimento, que é a única solução do problema no longo prazo.

Mas e a recomendação da abandalhada S&P?

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento



loading...

- Eua E A Crise.
ANTONIO DELFIM NETTO, hoje na FOLHA DE S. PAULO, escreve sobre os  EUA e a crise. Acabam de ser publicadas as estimativas corrigidas do crescimento real do PIB dos EUA (medido a preços constantes de 2005) e que dão uma visão mais realista...

- Irracionalidade Econômica E Racionalidade Política.
ANTONIO DELFIM NETTO, hoje no VALOR ECONÔMICO: O cabo de guerra que se instalou nos Estados Unidos entre o Executivo (dominado pelos democratas) e o Legislativo (dominado pelos republicanos) para a aprovação do aumento do endividamento público é...

- Incertezas Com Delfim Netto.
ANTONIO DELFIM NETTO, hoje na FOLHA DE S. PAULO, escreve sobre “Incertezas”. Uma boa parte das divergências de diagnóstico entre os economistas brasileiros refere-se às incertezas sobre como distinguir, inequivocamente, se estamos diante de...

- Keynes E Keynesianos.
Direto da FOLHA DE S. PAULO, os conselhos de Delfim Netto.Os problemas fiscais dos EUA e da Eurolândia só podem ser resolvidos com a volta do crescimento. O fundamental é que este não se faça aprofundando-os ainda mais. Quando se recomenda que as...

- Delfim Netto: Irracionalidade Econômica E Racionalidade Política - Valor Econômico
O cabo de guerra que se instalou nos Estados Unidos entre o Executivo (dominado pelos democratas) e o Legislativo (dominado pelos republicanos) para a aprovação do aumento do endividamento público é um jogo político de alto risco, mas com altíssimo...



Economia








.