Mão e contramão
Economia

Mão e contramão


Um dos anúncios mais importantes em termos de política monetária ocorreu na última semana nos EUA, quando o Federal Reserve (Fed) divulgou que adotará de um regime explícito de metas para a inflação. O Fed disse em seu comunicado acreditar que uma taxa de inflação de 2% ao ano seja a mais consistente com seu mandato de estabilidade de preços. 

Crê, ademais, que a comunicação clara deste objetivo colabora no sentido de manter as expectativas de inflação “ancoradas” ao redor desse número, já que a sociedade, sabendo do compromisso do Fed, deverá esperar, independente dos choques que possam atingir a economia, que a autoridade monetária faça o necessário para manter a inflação ao redor de 2%.

Tal ancoragem, por sua vez, permitirá ao Fed atingir os dois outros objetivos de seu mandato, a saber, moderar as taxas de juros e manter a economia operando próxima ao seu potencial.

Não há muita dúvida no que se refere à parte do mandato relativo aos juros: com expectativas reduzidas de inflação não apenas a taxa de juros (que incorpora as expectativas de inflação) é mais baixa, mas também a necessidade de sua elevação para conter choques inflacionários se torna menor.

É precisamente este segundo elemento que permite à economia operar, em média, mais próxima ao seu potencial do que ocorreria caso as expectativas de inflação não estivessem ancoradas. Concretamente, nos momentos de pressão inflacionária o Fed não seria obrigado a subir muito a taxa de juros, permitindo a desinflação com redução comparativamente modesta do produto relativamente ao potencial. Da mesma forma, em momentos de inflação abaixo da meta, reduções moderadas de taxas de juros permitiriam que a economia operasse por algum tempo acima do seu potencial, de modo a trazer a inflação de volta à meta.

O Fed acredita, portanto, que a adoção do regime de metas é consistente com seu triplo mandato: estabilidade de preços, pleno-emprego e taxas moderadas de juros. Reconhece, a bem da verdade, que, em determinadas circunstâncias (tipicamente um choque negativo de oferta, que eleve preços ao mesmo tempo que contrai o produto), pode ser obrigado a escolher entre um e outro, mas promete equilibrá-los, na medida do possível.

Resta saber, contudo, se a adoção do regime de metas pode colaborar para a recuperação da economia americana. A resposta me parece positiva, mas talvez menos do que o necessário.

Note-se que a ancoragem ajuda no sentido de evitar que as expectativas de deflação se consolidem. Como as taxas nominais de juros já estão muito próximas a zero (e não podem cair abaixo disso), expectativas de deflação fariam com que as taxas reais de juros (as taxas nominais deduzidas das expectativas de inflação) se tornassem positivas, dificultando a recuperação da demanda interna. Neste sentido há uma colaboração importante, mas sujeita a duas qualificações.

Em primeiro lugar cabe lembrar que o Fed já conseguiu impedir a consolidação de expectativas deflacionárias. Embora no regime anterior não houvesse uma meta explícita de inflação, havia uma meta implícita, também da ordem de 2% ao ano. Assim, relativamente ao regime preexistente os ganhos são mais modestos: as expectativas de inflação (medidas pela diferença entre os juros nominais e reais dos Treasuries de 5 anos) se elevaram em algo como 0,15-0,20% ao ano. Podem, é verdade, subir mais, pois ainda se encontram na faixa de 1,80% ao ano, mas não se deve esperar nada extraordinário deste lado.

Em segundo lugar, embora a elevação das expectativas tenha se traduzido em queda da taxa real de juros, não se sabe ainda qual o nível consistente com a recuperação mais expressiva da economia. Hoje a taxa real de 5 anos é cerca de -1% ao ano, mas não há garantia que seja este o valor preciso que levará ao crescimento mais rápido do consumo e do investimento dadas as forças contrárias, em particular o endividamento elevado das famílias.

Adicionalmente, a ancoragem das expectativas pode desempenhar também um papel em prazos maiores, em particular impedindo que as taxas de juros mais longas possam subir exageradamente quando a economia ganhar alguma tração e os riscos inflacionários se tornarem mais presentes.

Em suma, a adoção do regime aparenta ser capaz de evitar que a economia americana caia nas mesmas armadilhas em que o Japão se meteu após sua crise e ainda não conseguiu sair. Há dúvidas sobre a magnitude dos efeitos, mas a direção é correta e, se não é a salvação da lavoura, vejo isso como um fator a mais a impulsionar a recuperação.

Isto dito, cabem ainda dois comentários, cuja ironia não deve escapar ao observador mais atento.

Com efeito, os críticos locais do regime de metas sempre apontaram os EUA como exemplo de uma abordagem alternativa de política monetária à nossa, pretensamente superior; o Fed, todavia, mostrou que não compartilha desta opinião, como revelado por sua própria decisão.

Por fim, não há como deixar de notar que, enquanto o Fed se move para institucionalizar o regime, no Brasil estamos sistematicamente desmantelando o que funcionou tão bem por tantos anos.

O regime de metas fica para o outro lado...


(Publicado 2/Fev/2012)



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