Licença para gastar
Economia

Licença para gastar


O anúncio da transformação do país de devedor em credor externo gerou mais furor do que eu poderia imaginar após a leitura da nota do Banco Central que divulgou o acontecimento. A rigor, a proclamação da façanha é mais um marco simbólico que qualquer outra coisa, dado que o Brasil já havia passado pelo ajuste de suas contas externas ao longo de vários anos, tendo registrado superávits em suas transações correntes desde 2003. Neste sentido, mais relevantes que a passagem em si são as reações que esta provocou, em particular a noção de que, uma vez liquidada a dívida externa, chegamos à hora do gasto.

Tal idéia, por incrível que possa parecer, não é de todo indevida, desde que se tenha nítido quem se tornou credor (e pode, portanto, desfrutar desta condição) e quem continua devedor. O Brasil, isto é, o conjunto da sociedade brasileira se tornou credor do resto do mundo; em contraste, o governo brasileiro segue devendo, se não para o exterior, para o resto da sociedade.

Esta distinção está longe de ser mero detalhe. O surgimento de um expressivo superávit em conta corrente nos últimos cinco anos esteve associado a uma redução significativa do dispêndio privado: o consumo das famílias, equivalente a 63,8% do PIB entre 1995 e 2002, reduziu-se a 60,5% do PIB entre 2003 e 2007; o investimento privado, por sua vez, veio de 16,7% do PIB para 16,2% do PIB no mesmo período. Em outras palavras, o setor privado contribuiu com uma redução equivalente a 4% do PIB em seus gastos. Em contraste, o setor público diminuiu seu consumo em apenas 0,5% do PIB ao longo deste mesmo período. Estes números definem claramente quem fez (e quem não fez) os sacrifícios para que nos transformássemos em credores internacionais.

Já o setor público não se tornou credor. Houve redução da dívida pública, é verdade, e uma mudança dramática em sua composição, já que hoje o governo tem mais ativos que passivos em moeda estrangeira (o que se provou fundamental para a solidez da economia face à crise internacional), mas, no conjunto de dívida externa e interna, o governo ainda deve à sociedade pouco mais de 40% do PIB.

À luz destas considerações, nosso ajuste externo permite ao setor privado retomar seus gastos, em particular os investimentos. Como já tive a oportunidade de argumentar neste espaço, cada 1% do PIB a mais de investimento eleva a capacidade de crescimento sustentável do país em algo como 0,2% ao ano, ou seja, precisamos elevar nosso investimento em 5% do PIB para crescermos 1% ao ano mais rápido do que podemos hoje.

Mesmo, porém, que o consumo das famílias se mantenha nos patamares atuais, a elevação do investimento implica redução do superávit externo caso o gasto público não compense tal aumento. Na ausência, pois, de uma política fiscal mais austera, a expansão do gasto privado irá levar ao reaparecimento dos déficits externos. Contudo, frente à eliminação da dívida externa, o ressurgimento destes déficits é um fenômeno bem menos preocupante do que já foi.

Vale dizer, a conclusão é que, sim, a sociedade brasileira pode aumentar seus gastos (e investimentos são, como sempre, bem-vindos) agora que a dívida externa se foi. Isto dito, o setor público, ainda endividado, não deveria ter qualquer motivo para interpretar este fato como licença para persistir no esbanjamento, muito menos aumentá-lo.

(Publicado 5/Mar/2008)



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