Os 12% de Héracles
Economia

Os 12% de Héracles



Dizia Aristóteles que a tragédia se caracteriza, entre outras coisas, pela mudança da fortuna do herói, consequência de erro (intencional ou não) cometido no passado, através da qual o herói trágico e a audiência obtêm uma revelação acerca da natureza humana (ou da vontade dos deuses). Não me escapa a ironia (outra palavra grega) dessa definição encampar de forma tão completa os desenvolvimentos recentes na Eurolândia. A Grécia passa por uma mudança de fortuna, resultado de erros passados, e, como na tragédia, a queda traz uma revelação sobre a natureza da crise.

O problema se manifesta como um aumento considerável dos prêmios de risco associados à dívida helênica. Enquanto escrevo este artigo o custo de proteção contra um possível calote grego gira em torno de 350 pontos-base (3,5% ao ano para o prazo de 5 anos), vindo de valores ao redor de 100-150 pontos na segunda metade de 2009. Em comparação, o prêmio de risco no caso do Brasil para o mesmo prazo é próximo a 140 pontos, enquanto o argentino é de 1100 pontos. Estes preços sugerem que mercados consideram haver uma probabilidade razoável de um default grego nos próximos 5 anos.

A razão para tal desempenho parece clara. Enquanto outros países da Eurolândia fizeram um esforço para reduzir o endividamento do setor público (a dívida média da região atingiu 66% do PIB no final de 2007), a Grécia entrou na crise com uma dívida próxima a 100% do PIB, ou seja, praticamente sem espaço fiscal para incorrer em novos déficits. Apesar disto, em 2009 o déficit público alcançou 12% do PIB, valor não apenas elevado, mas, principalmente, muito superior ao divulgado originalmente pelas autoridades gregas (3,7% do PIB), levando o próprio governo a admitir que, em primeiro lugar, o país sofre de um “déficit de credibilidade”.

Em razão do descaso fiscal anterior, a Grécia enfrenta agora a necessidade de apertar sua política fiscal em meio a forte recessão, sofrendo ainda com o aumento do custo de capital associado à elevação do risco-país no contexto de uma taxa fixa de câmbio. Em outras palavras, o país está condenado a uma política fiscal pró-cíclica, por conta da falta de cuidado anterior. Nem no Hades, onde Tântalo passa fome e sede em meio à água e iguarias, e Sísifo empurra continuamente sua pedra morro acima,  seria possível imaginar punição mais rigorosa.  Reduzir o déficit nestas condições seria um desafio digno do 13o trabalho de Héracles.

Que o diga a Argentina, que, sob circunstâncias semelhantes em 2001, tentou heroicamente ajustar suas contas, embora sua dívida fosse, a bem da verdade, consideravelmente menor do que a grega. Por outro lado, nossos vizinhos não faziam parte de um clube exclusivo, disposto, aparentemente, a financiar o país nesse período delicado, desde que os gregos se comprometam com um pacote duríssimo de austeridade fiscal.

E, após a catarse, o que se revela para a audiência? Acima de tudo que países ganham e perdem facilmente os favores do mercado. Quando a fortuna muda não falta quem aponte os diversos erros cometidos nos anos de felicidade como motivo para a tragédia recente. Descuidos fiscais e truques contábeis, que parecem modestos nos anos de felicidade, têm o mau hábito de voltar para nos assombrar quando a maré vira, fato que não deveria ser esquecido em momento algum por qualquer gestor de política econômica, mas frequentemente é.

À luz disso, só nos resta concluir, como Ésquilo: “não considere um homem feliz até que morra”. Os antigos helenos sabiam das coisas.

(Publicado 17/Fev/2010)



loading...

- Os Brutos Também Mostram
Desde que passou a compilar sistematicamente suas estatísticas fiscais o Brasil adotou o conceito de dívida líquida do setor público (DLSP), deduzindo certos ativos da dívida bruta. Havia e ainda há (até certo ponto) motivos para este tipo de...

- Prevenir O Quê?
Reza o credo heterodoxo que a melhor defesa contra a crise seria a manutenção de saldos positivos nas contas externas, haja vista, por exemplo, a relativa resiliência da economia chinesa no atual contexto. No entanto, ainda que a China tenha se mostrado...

- Lições Do Bom Livro
“O que Deus fará mostrou ao Faraó. Eis que sete anos vêm; haverá fartura grande em toda a terra do Egito. E levantar-se-ão sete anos de fome atrás deles; e será esquecida toda fartura na terra do Egito (...) E agora veja o Faraó um homem entendido...

- Entendendo Economia Brasileira Com Gustavo Franco.
Ao alerta de GUSTAVO FRANCO, hoje no ESTADÃO, deve ser dada uma boa atenção.A situação fiscal do Brasil é hoje muito semelhante à da Grécia, avalia o ex-presidente do Banco Central (BC) e sócio da Rio Bravo Investimentos, Gustavo Franco. A...

- A Crise Do Euro.
Nestes dias de trabalhos extras e com o prazo no limite, não posso deixar órfãos aos meus quase dois atentos e fiéis leitores, principalmente devido à grave situação pela qual passa o EURO. Diante disso, deixo-os na companhia do colega LUIZ CARLOS...



Economia








.