O ataque dos geiselistas II
Economia

O ataque dos geiselistas II


Lendo os comentários a meu post anterior (O ataque dos geiselistas), fica claro que alguns de meus pontos precisam ser elaborados, a saber, a questão de como a política de barreiras à entrada e tributação seletiva na indústria automobilística é danosa ao emprego e produto daquela indústria no longo prazo.

Não é um argumento complicado, mas é um tanto contra-intuitivo para muitos de nós que fomos doutrinados ainda jovens dentro da visão nacional-desenvolvimentista do geiselismo, de direita ou de esquerda.

A indústria automobilística pode ser caracterizada como um setor que exibe economias de escala, não só ao nível da firma, como a nível nacional. Como isso funciona? Ao nível da firma, o custo por unidade de se produzir 10 mil carros por ano é mais alto do que o custo por unidade de se produzir 100 mil carros por ano. Isto ocorre porque existem custos fixos (por exemplo, no P&D da melhor forma de se produzir) que podem ser ‘distribuídos’ para um maior número de unidades. Já a nível nacional, as economias de escala ocorrem porque uma maior produção local cria incentivos para uma maior densidade local das atividades de suporte (por exemplo, autopeças ou consultorias de serviços) e um mercado de trabalho mais ativo e especializado (por exemplo, quando a Ford demite João, ele ainda pode arrumar emprego na Volks, portanto ele tem melhores incentivos para adquirir habilidades específicas à indústria de veículos).

Carros também são um bem comercializável e em geral barreiras ao comércio internacional são pequenas e em boa parte do planeta, inexistentes. Por isso mesmo, alguns países como o Japão e a Coréia do Sul são capazes de produzir muito mais carros do que seu mercado interno pode absorver. Em outras palavras, existe um grande potencial para exportação do excedente se o produto tiver qualidade/preços competitivos.

Considerando essas duas características (economias de escala e possibilidade de se exportar o excedente), qual deve ser então o objetivo de qualquer política industrial? A resposta é auto-evidente: conquistar participação no mercado (market share) global.

Como isso pode ser feito?

Reduzindo-se custos. A redução de custos tem um componente macroeconômico (uma política fiscal mais apertada ou um salário mínimo indexado menos agressivamente ajudariam), além de um componente microeconômico (menos regulação das empresas já instaladas ajudaria). Existe claramente um papel para o Estado aqui.

Melhorando os produtos. A melhoria dos produtos naturalmente depende das pressões competitivas. Um mercado doméstico cativo é um subsídio à produção de calhambeques e um imposto sobre as exportações.

Facilitando entrada de novas firmas. Como existem ganhos de escala a nível nacional, a exigência de conteúdo nacional deveria ser zero (digo mais, qualquer exigência de conteúdo nacional acima de zero é equivalente a passar um atestado de burrice nacional) e a premissa básica da política industrial deveria ser criar nenhum empecilho para a expansão da capacidade e número de firmas operando no Brasil, tanto montadoras quanto seus fornecedores. Se temos capacidade de produzir parafusetas a custo mínimo, fábricas de parafusetas no Brasil vão vicejar com a expansão da capacidade das montadoras; por outro lado, se nossas parafusetas são caras, a exigência de conteúdo nacional mínimo funciona como um imposto sobre nosso consumidor e um dreno na competitividade da indústria.

Integrando a produção globalmente. Semelhante ao item acima. Os geiselistas originais achavam que investir em diversificação da estrutura produtiva e completar as indústrias de base levaria a indústria brasileira ao Nirvana. Erro crasso, pois nosso desenvolvimento industrial estagnou depois de duas décadas de crescimento acelerado exatamente PORQUE os geiselistas tiveram sucesso em usar a máquina estatal para diversificar a estrutura produtiva e completar as indústrias de base. Uma indústria de base completa e ineficiente é a melhor garantia que podemos ter que nossa indústria de bens de consumo vai ser ineficiente também. Quem ainda não entendeu isso merece ser exposto ao ridículo no debate.

Como discuti anteriormente, o aumento seletivo do IPI gera incentivos contra a redução de custos e melhoria dos produtos na indústria, além de dificultar a entrada de novas firmas e taxar as firmas já existentes (via requerimentos de conteúdo nacional).

Hoje em dia, a produção de carros no Brasil é da ordem de uns 3.4 milhões por ano (2010, Anfavea). Deste total, uns 0.5 milhões de veículos montados foram exportados em 2010, em sua vasta maioria para mercados marginais como o Mercosul, a África do Sul e o México, enquanto o Brasil importou um pouco menos que 0.5 milhões de carros, dos quais uns 0.3 milhões do Mercosul e uns 170 mil de fora do Mercosul (Ásia, Europa, EUA).

Ao mesmo tempo, países como o Japão e a Alemanha produziram 9.6 e 5.9 milhões de carros em 2010, o que nos coloca na posição de um produtor de tamanho médio, atrás também da China (18.3 milhões!!), Coréia do Sul (4.3 milhões) e Estados Unidos (7.8 milhões). Fonte: OICA

Com esse arcabouço conceitual e os dados acima, podemos nos perguntar quais devem ser os objetivos de nossa política industrial.

Podemos imaginar um cenário em que nossas exportações passam a atingir mercados menos marginais que o Mercosul e a África do Sul, e chegamos a uns 2 milhões de automóveis exportados por ano. Para chegar a esta posição faz-se necessário que a indústria instalada no Brasil possa reduzir custos e melhorar a qualidade para competir com os carros asiáticos. Isto não vai ser atingido dando-lhes uma carta branca para não competir com os carros asiáticos no mercado doméstico. Poderíamos ter dado grandes passos em direção a esse objetivo se não tivéssemos virado as costas para a ALCA, mas esse trem já deixou a estação.

Por outro lado, podemos garantir o mercado doméstico de uns 3 milhões de carros por ano, via proteção à nossa ‘indústria nascente’. A indústria instalada no Brasil não teria que fazer um ajuste para se manter competitiva, portanto deixaria de explorar o potencial de exportação para novos mercados. É possível até que percamos participação nos mercados para os quais já exportamos, como a África do Sul e o México, afinal o lobby da ANFAVEA deve ser menos convincente em Pretoria ou no México do que em Brasília. Note também que se a indústria automobilística se restringir ao mercado doméstico e Mercosul, podemos estar certos que não vai ser dessa cartola que vai sair a aceleração do crescimento. Esta parece ser a nossa escolha de política atual.



No meu próximo post eu vou discutir quais os prós e contras de decisões de política industrial em resposta ao aumento observado das importações de carros populares vindos da Ásia.






E enquanto isso, Guido Mantega estudava sexo e poder na USP...








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