Estou a acabar de ler o livro "Bilhete de Identidade", a autobiografia de Maria Filomena Mónica. É muito interessante e bem escrito, e não me parece que vá provocar nenhuma crise social. É curioso como uma pessoa tão fortemente ligada aos estratos superiores da sociedade do Estado Novo tenha "passado ao lado" (como ela própria reconhece) de importantes factos da vida política e social do Portugal daquela época. Única e significativa excepção: a presença chocante da pobreza/miséria e a apatia com que todos (ricos e pobres) a encaravam - uma descoberta feita pela autora sem a ajuda de ninguém, nem de nenhuma ideologia. A parte dos relacionamentos amorosos não me pareceu muito interessante, ao contrário da deriva intelectual da bela Mena, nomeadamente a sua aproximação aos autores marxistas, capítulo em que o livro se mostra muito revelador dos mecanismos que levavam a juventude mais culta a aproximar-se dum marxismo extremista. Entre a coisas mais divertidas do livro está a descrição de um patético meeting de intelectuais oposicionistas portugueses, em 1973, em Paris (página 304). Entretanto aqui ficam algumas citações, bastante justas, sobre a escola de Economia da época: o ISCEF. «Na Páscoa de 1960, decidi ir até ao ISCEF, onde descobri que a licenciatura em Economia - à qual a área disciplinar por mim escolhida dava acesso - possuía cadeiras com nomes tão horrendos quanto Contabilidade, Estatística e Finanças. O casarão da Rua do Quelhas, o antigo convento das Inglesinhas, ainda parecia habitado pelos fantasmas das freiras que ali tinham vivido. Na secretaria, onde me dirigi para obter as informações sobre o curriculum, vegetavam três múmias. Não vi um único aluno. O local era tão execrável que, pensei, jamais um ser humano poderia, de sua livre vontade, frequentá-lo. O meu pai, que por lá se licenciara, confirmou a impressão. Fiquei sem saber o que fazer. Não me apetecendo um interlúdio doméstico, o ensino superior era a minha única hipótese. Mas, sabia-o agora, o ISCEF não me servia.» [pag. 126] «Em 1973, por a instituição ter passado a ser dominada por um grupo de esquerdistas, o Ministro da Educação desistira de reformar o ISCEF - Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras -, tendo criado o ISCTE - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa -, onde, além de uma licenciatura em Economia, inaugurara outra, em "Ciências do Trabalho e da Empresa" (eufemismo utilizado para designar a Sociologia). O subdirector da nova escola, o Prof. Sedas Nunes, que soubera da minha existência através do Vasco [Pulido Valente], convidou-me para sua assistente. [...] A cadeira que me foi atribuída chamava-se "Demografia, Povoamento e Recursos Hmanos", outro eufemismo para significar, desta vez, Introdução à Sociologia» [pag. 311/2]Não compreendo porque é que este livro despertou tanta animosidade na blogosfera. O Grande Loja diz que "É uma obra amoral e egocêntrica que retrata um percurso errático, desde um berço dourado, até à idade adulta, de uma menina 'bem', que estava 'predestinada' a estar no topo, 'à sua maneira'." Estou mais de acordo com o Desesperada Esperança: "Há, no livro, um aspecto histórico que, embora secundário, embora servindo apenas como pano de fundo, não deixa de ser interessante. Há, no relato da sua infância e da adolescência, uma caracterização do catolicismo do período, bem como [...] da vida familiar das classes altas lisboetas dos meados do século XX. [...] E em último lugar, está, em Bilhete de Identidade, um retrato da intelectualidade esquerdista de finais dos anos 60/princípios de anos 70, fruto do convívio com gente como António Pedro Vasconcelos, João César Monteiro e Vasco Pulido Valente." |