Na semana passada, o governo reagiu de forma mais contundente às ameaças de novas rodadas de valorização da moeda nativa. Como de hábito, em sua caducidade tediosa, renovou-se a discussão sobre a efetividade das intervenções no mercado de câmbio spot e futuros. Desde a desditosa aventura do câmbio semi-fixo dos anos 90, a opinião dos mercados sobre o câmbio reproduz os mesmos argumentos, tão acerbos quanto monótonos. Prodigiosas e religiosas teorias levaram a finança global ao colapso. Mas os autores da façanha não se vergaram ao peso do fracasso. Muito ao contrário. Com fé redobrada, os crentes devotam-se a afastar seus acabrunhamentos. Nessa quadra da vida e nesse espaço do mundo, reconfortam suas certezas com abluções agônicas na liquidez produzida abundantemente pelo Quantitative Easing do dr Bernanke.
Não julgue mal o leitor: os operadores dos mercados de câmbio são obrigados a se refestelar na arbitragem financeira e na especulação de mão única. Contritos em sua crença na infalibilidade dos mercados, os fiéis tomam, sim, decisões racionais no âmbito microeconômico. A racionalidade microeconômica, é verdade, só realiza seus desígnios enquanto mergulhada no "consenso altista" que induz os protagonistas privados a acreditar na valorização continuada da taxa de câmbio. Diria um keynesiano de boa cepa que no mercado de câmbio brasileiro as expectativas altistas são largamente predominantes.
Os servos da Razão engordam seus cabedais à sombra da cumplicidade da consciência ingênua incumbida de desempenhar uma dupla função: a de "naturalizar" o fenômeno da valorização cambial e, melhor ainda, a de suportar os efeitos de uma eventual "parada súbita", sempre acompanhada das desventuras da desvalorização violenta.
As consequências são conhecidas, mas quase sempre ignoradas: os fluxos de financiamento externo dos últimos dois anos e meio constituíram um alentado passivo bruto em moeda estrangeira. Esse passivo - direitos denominados em moeda estrangeira sobre a riqueza e a renda gerada no Brasil - se distribuem entre aplicações de portfólio, empréstimos intercompanhias e endividamento dos bancos e das empresas. Os descuidos da macroeconomia da poupança e do investimento, sem bancos nem finança, ocultam as transformações impostas pelos fluxos de capitais à composição dos balanços das instituições financeiras e das empresas.
As alterações nascem e se multiplicam nos períodos em que o crédito externo fácil e barato faz aliança com uma taxa de juro apetitosa. Salvo nos casos raros de hedge perfeito, não há como neutralizar os efeitos de uma desvalorização mais forte do real nos balanços contaminados pelo "descasamento de moedas". Os surtos eufóricos de liquidez fácil e de endividamento externo - acompanhado de elevação dos preços dos ativos (inclusive do câmbio) - são seguidos de "crises de confiança" e ajustamentos recessivos. Infelizmente, os movimentos de capitais são e sempre foram pró-cíclicos, para desgosto dos que acreditam em Papai Noel ou em modelos mais tolos do que inúteis.
Enquanto seu lobo não vem, as exportações brasileiras de manufaturados se debilita rapidamente. A derrocada exportadora faz parceria com a invasão das importações de produtos manufaturados, prenhes de incentivos e subsídios oferecidos generosamente pelos competidores espertos. Sob as delícias do câmbio valorizado cresce a ameaça da peste holandesa que promete transformar a economia urbano-industrial brasileira em escombros.
Do outro lado do mundo, graças a estratégias eficazes, os chineses não só crescem acima da média mundial, como ainda sustentam o crescimento com o dinamismo das exportações e uma elevada taxa de investimento. O yuan está na alça de mira dos capitais nervosos, mas sofreu lenta valorização nos últimos doze meses, protegido pelas intervenções do Peoples Bank of China que não só compra agressivamente divisas como exerce um efetivo controle e direcionamento quantitativo do crédito. Como demonstra o economista Patrick Artus, as autoridades chinesas conseguem ultrapassar de forma original as contradições entre o movimentação de capitais, a taxa de câmbio administrada e a independência da política monetária.
Eles colhem altas taxas de investimento na indústria e na infraestrutura e rápida escalada no gradiente do horizonte tecnológico. No caso da China, a política de defesa do yuan e a oferta ilimitada de mão de obra barata se juntam para esfolar o que resta das estruturas industriais nos parceiros/concorrentes incautos e desavisados da periferia.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e fundador da FACAMP – Faculdades de Campinas.