Fora do lugar
Economia

Fora do lugar


É praticamente impossível ler certos textos sem se deparar com a expressão “câmbio fora do lugar” ou algo equivalente, usualmente acompanhada por uma historinha sobre a taxa de juros levar à apreciação “xxx” do câmbio (o leitor fica livre para preencher o “xxx” com “criminosa”, “irresponsável”, “leviana”, ou qualquer outro adjetivo habitualmente utilizado). Já tive oportunidade de examinar as dificuldades que membros desta escola enfrentam em explicar porque o câmbio seguiu se apreciando com a diferença entre os juros domésticos e externos se estreitando a cada mês, mas hoje quero abordar a noção do “câmbio fora de lugar”.

Uma das formas de olhar o problema consiste em acompanhar a evolução da taxa de câmbio ao longo dos anos ajustando-a pela diferença entre a inflação doméstica e internacional. O melhor trabalho que conheço a este respeito é o acompanhamento do Departamento Econômico do BC, que faz uma ponderação cuidadosa das diversas taxas de câmbio de acordo com o volume de comércio dos diferentes países com o Brasil. De acordo com estes dados, a taxa real de câmbio em janeiro deste ano estaria 1,7% abaixo da média observada desde janeiro de 1988, o que, convenhamos, não parece ser nenhum desastre.

Isto dito, resultados com base nesta abordagem são muito menos robustos do que gostaríamos. Escolhas diferentes das medidas de inflação (preços no atacado ou ao consumidor) ou de período amostral levam a resultados distintos. A própria escolha da média do período como referência não é isenta de problemas, a começar porque, mesmo com um número bastante elevado de observações mensais, não há como ter certeza que a taxa de câmbio é uma variável que retorna à média (acredito que sim, mas os testes estatísticos são inconclusivos).

Nesta situação o melhor é voltar à teoria econômica em busca de pistas que dêem sentido aos dados e, de fato, esta nos oferece um modelo que identifica duas condições de equilíbrio expressas em função da taxa real de câmbio e da demanda doméstica (consumo, investimento e gastos do governo). A primeira condição é o equilíbrio externo, ou seja, a manutenção de certo saldo na conta corrente que seja visto como sustentável ao longo dos anos.

A segunda se refere ao equilíbrio doméstico, que pode ser interpretado como uma condição acerca da evolução das taxas de inflação dos produtos que não podem ser comercializados internacionalmente, tipicamente serviços (escola, aluguel, cinema, manicure). Se a taxa de inflação destes produtos estiver crescendo é sinal de excesso de demanda neste mercado; se caindo, excesso de oferta. Em equilíbrio geral, portanto, a inflação dos não-comercializáveis é estável e o país gera um saldo em conta corrente percebido como sustentável.

Caso, porém, a taxa de câmbio esteja “fora do lugar”, alguma destas condições (ou ambas) não poderá ser atendida. Em particular, deveríamos observar uma piora nas condições do balanço de pagamentos, ou uma queda acelerada das taxas de inflação de produtos não comercializáveis internacionalmente, ou ainda uma combinação destes dois fenômenos. O que dizem os dados?

No que se refere ao balanço de pagamentos, não apenas o país registra expressivo saldo na balança comercial, que se traduz em superávit próximo a US$14 bilhões na conta corrente, como também as expectativas coletadas pelo BC acerca do saldo da balança para 2007 (média superior a US$40 bilhões) sugerem manutenção daquele superávit em mais de 1% do PIB.

Este superávit, porém, poderia resultar de uma demanda doméstica muito fraca, que reprimisse as importações e forçasse certos setores a exportar mais por falta de mercado. Só que a demanda doméstica tem crescido bem (4% em 2006), acima de sua média desde 1993 (2,4%), sugerindo mais força que se imagina, e deve crescer ainda mais este ano. Consistente com isto, a inflação de não-comercializáveis tem oscilado desde meados de 2006 ao redor de 4%.

Assim, a combinação de superávits expressivos em conta corrente com demanda doméstica se expandindo vigorosamente não sugere nada de fundamentalmente errado com a taxa de câmbio. Se algo há fora de lugar não é o câmbio, mas algumas idéias defendidas contra todas as evidências.

(Publicado 21/Mar/2007)



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