Comentários sobre o artigo “Existe doença holandesa no Brasil?” de Luiz Carlos Bresser Pereira e Nelson Marconi
Economia

Comentários sobre o artigo “Existe doença holandesa no Brasil?” de Luiz Carlos Bresser Pereira e Nelson Marconi


Ler o artigo do Bresser Pereira e Marconi exige um bocado de masoquismo e paciência. As idéias e conceitos são muitas vezes indefinidos ou confusos - tenho certeza que um bom editor poderia melhorar aquele texto consideravelmente.

Mas como diria o poeta beatnik, vamos à substância!

No mundo descrito pelos autores existem dois tipos de bens comercializáveis: (1) bens ricardianos em que existem rendas econômicas e presumivelmente uma oferta inelástica (aliás um premissa bem equivocada); e (2) bens em cuja produção existem efeitos externos como retornos crescentes ou forward/backward linkages (os autores não parecem saber ao certo qual a fonte desses efeitos externos, o que veremos mais tarde, prejudica sua discussão de política econômica) e cuja oferta é elástica com relação à taxa real de câmbio.

Uma questão emerge então: um boom no setor ricardiano tenderia a apreciar a taxa de câmbio efetiva e sugar os recursos/fatores do setor gerador de efeitos externos. É a doença holandesa que toma tanta atenção e preocupação dos autores.

Estes aplicam o modelo para a economia brasileira. Dos anos 30 até 1992, tarifas de importação e subsídios a exportação de manufaturados (que os autores associam com os efeitos externos) teriam reduzido a lucratividade relativa do setor ricardiano assim pondo em cheque a tendência para a taxa real de câmbio se apreciar. Com a abertura econômica, - que os autores, em um momento esquizofrênico, elogiam na nota de rodapé #15 - este modelo teria sido desmontado, ficando assim o Brasil exposto a tal doença holandesa, e gerando a tal mal fadada desindustrialização.

Problemas abundam na argumentação dos autores.

Vou começar com os fatos.

Desindustrialização desde 1992? Logo no primeiro parágrafo, a primeira bomba detona: “a doença holandesa vem de fato desindustrializando o país desde 1990/92, quando foram eliminados os mecanismos de sua neutralização”. Uma palavra para definir esta sentença: pataquada!

Primeiramente, André Nassif (2008) mostra claramente que não houve desindustrialização no Brasil durante o período em questão: a participação da indústria de transformação no PIB tem se mantido constante desde o começo dos anos 90 (gráfico 4). Segundo, existe evidência de ganhos substanciais de produtividade na primeira metade dos anos 90 relacionados à abertura comercial (Nassif, gráfico 1; mas vide também Ferreira e Rossi, 2003); mais interessantemente, segundo os dados pré 1990 de Nassif (2008) cuja qualidade eu não posso garantir, o período em que houve uma desindustrialização massiva no país foi exatamente durante o governo Sarney do qual um dos autores foi ministro, e quando vários membros célebres da quermesse estavam pilotando nossa política industrial.

Em resumo, o artigo começa com uma pataquada.

Os autores provavelmente sabem disso e aparentemente internalizaram o fato que não houve uma redução na participação dos manufaturados no valor adicionado total na economia brasileira. Mas os fatos não movem ou comovem os autores, que assim passam a buscar alguma, qualquer, definição de desindustrialização que se ajuste a seu conto da Carochinha. Mas tal empreitada não é fácil! Afinal, como sabemos de Nassif (2008), a composição de nossas exportações não colabora com a tese: a participação do setor de alta tecnologia dos produtos manufaturados aumentou de 5.5% para 8.0%; e o setor de baixa tecnologia aumentou de 21.6% para 23.5% de nossas exportações durante o período de 1989 a 2005.

Então temos a seguinte situação: os autores provavelmente sabem que a participação da indústria de transformação no PIB insiste em não declinar; e que as manufaturas de alta e média tecnologia insistem em aumentar sua participação em nossa pauta de exportações... O que fazer? Diz o manual do keynesiano de quermesse que para cada conto da Carochinha pode ser criada uma estatística que - mesmo não confirmando o conto - pode confundir os incautos e distraídos! E assim eles procedem. O que importaria para os autores seria a participação dos manufaturados dentro do grupo dos bens comercializáveis (isto é, manufaturados mais commodities).

Primeiramente, esse conceito é non-sense, absurdo e os autores merecem ser motivo de gracejos pelas costas e torta na cara por isso. Afinal, segundo o conceito de Bresser Pereira e Marconi, um país que tem 10% do PIB em manufaturados, 0% em commodities e 90% em serviços e que passa a ter 20% em manufaturados, 5% em commodities e 75% em serviços é um país que passou por uma desindustrialização: no primeiro momento os manufaturados respondiam por 100% dos comercializáveis, caindo depois para 80%!

O conceito não é apenas ridículo como artefato estatístico, mas também teoricamente. Se a produção de manufaturados gera efeitos externos, o conceito relevante é a proporção de manufaturados no valor adicionado ou PIB. Outros autores argumentam que o ato de exportar gera efeitos externos porque exportar requer estabelecimento de padrões de qualidade, de administração etc. Mas a fábula de que o saldo comercial é relevante para os tais efeitos externos escapa minha capacidade de compreensão.

Mas os problemas teóricos continuam:

Falácias sobre efeitos externos. No centro do argumento dos autores está a hipótese que o setor ricardiano não geraria efeitos externos. Tal hipótese, entretanto, não encontra respaldo algum na literatura de história econômica brasileira. O setor cafeeiro trouxe as ferrovias e com elas a metalurgia para o estado de São Paulo. Vide Suzigan (1986), e também a tese de doutorado do Robert Nicol, que é colega de longa data de um dos autores. Além disso, os setores da indústria cujas exportações mais se contraíram em tempos recentes foram têxteis, vestuário, calçados, metalúrgica básica, os quais eu não descreveria como prováveis fontes de grandes inovações tecnológicas e efeitos externos; enquanto os setores da indústria cujas exportações mais cresceram foram os setores de equipamentos de transporte aeronáutico, veículos automotores e material eletrônico, aparelhos e equipamentos de comunicação (Nassif 2008, Tabela 2).

Resumindo o que temos até agora: não existe evidência de desindustrialização, assim como não existe evidência alguma que manufaturados necessariamente geram mais efeitos externos que commodities, e ainda que isso fosse verdade, os setores dos manufaturados que presumivelmente gerariam maiores efeitos externos são exatamente aqueles que têm tido performance superior nos últimos 20 anos.

Mas a bizarrice continua nas recomendações de política. Escapa-me entender por que os autores focam nas políticas comerciais e cambiais para internalizar os presumidos efeitos externos do setor de manufaturas.

Primeiro, existe evidência bem convincente que restrições comerciais são detrimentais ao crescimento econômico (por exemplo,o recente artigo de Taylor e Estevadeordal, 2008). Uma viagem para Cuba também pode ilustrar bem o efeito de restrições comerciais.

Segundo, nossa própria experiência com restrições comerciais não deixa margem de dúvida sobre seu fracasso, inclusive o inferno que recaiu sobre nossas cabeças durante o governo do qual o professor Bresser Pereira foi ministro, em que a evidência disponível sugere ter ocorrido o maior processo de desindustrialização de nossa história, em parte devido a políticas industriais tão obviamente fadadas ao fracasso que nem o maior e mais cínico inimigo do Brasil teria a audácia de propor (exemplo: Lei de Reserva de Informática).

Terceiro, a competitividade por meio de câmbio desvalorizado provavelmente pode comprar uma sobrevida adicional para o setor calçadista, ao custo de reduzir o salário real da grande maioria dos brasileiros, mas se os autores realmente acreditam que existem efeitos externos relevantes no setor manufatureiro, tais externalidades deveriam ser resolvidas com política industrial localizada, não com medidas que afetam todos os setores de atividade, como a política cambial.

Quarto, os autores não sabem, ou se negam a explicar, a natureza dos efeitos externos que eles associam à atividade manufatureira. Em um trecho eles parecem estar se referindo a retornos crescentes. Se este for o caso, política cambial não é o instrumento adequado, mas sim política industrial seletiva visando maximizar a escala de um pequeno grupo de setores. (Aliás, se retornos crescentes forem preponderantes, provavelmente a melhor política cambial deve ser deixar o real apreciar ao ponto de reduzir a competitividade dos setores industriais marginais e assim reduzir a diversificação da pauta de produção industrial). Em outro trecho, eles parecem estar se referindo a forward/backward linkages, mas os autores não apresentam um exemplo sequer que corrobore a tese que efeitos externos são mais importantes nas manufaturas em geral do que nas commodities que nós exportamos em particular.

Referências

Ferreira , Pedro Cavalcanti e José Luiz Rossi, 2003, New Evidence from Brazil on Trade Liberalization and Productivity Growth, International Economic Review, Vol. 44, No. 4, pp. 1383-1405. http://www.jstor.org/stable/3663656?

Nassif, André 2008, Há evidências de desindustrialização no Brasil? Revista de Economia Política v. 28, pp. 72-96. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-31572008000100004&script=sci_arttext

Suzigan, Wilson, 1986 “Indústria brasileira: origem e desenvolvimento”

Taylor, Alan e Antoni Estevadeordal, 2008 “Is the Washington Consensus Dead? Growth, Openness, and the Great Liberalization, 1970s-2000s,” NBER Working Papers 14264.



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