Agora, Deus (II).
Economia

Agora, Deus (II).




Sobre “O Escriba – Gênese do Político”, de
Regis Debray


“Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”.
(Voltaire)

“A lógica de Deus”, o primeiro tópico do segundo capítulo deste livro¹ traz uma fundamentação de caráter lógico que procura elucidar onde se situa o papel do clérigo na formação de uma sociedade. Tal como em Durkheim, aqui pode se encontrar a religião como um fator primordial à organização de um grupo social. Tal como lá, não há aqui também sociedade sem religião.
A idéia parte de um pressuposto básico: “as relações entre os homens tem sempre coisas por objeto: as relações dos homens com as coisas passam sempre pelos homens”. Daí, qualquer relação entre os homens é dotada, primeiro, de um elemento material ou físico e outro lógico ou moral. Este preceito adquire uma significação central quando se trata de “poder político” (relação social característica) pois a partir de então este só se realizará quando forem atendidos os seus dois requisitos - material e lógico. “A própria prisão por dívida se dá pela sanção de um direito, e o direito do mais forte, como Rosseau demonstrou definitivamente na abertura de seu ‘Contrato Social’, é uma contradição dos termos, que se auto-invalida gradativamente”.

Assim,

“Nenhuma subordinação real é possível entre pessoas sem a intervenção de um elemento simbólico, identidade lógica ou valor moral. O interesse de todo poder político consiste então em se expor como sujeito metafísico, suporte de valores universais, a fim de ocultar a física dos riscos”.

A figura do clérigo, como o leitor já deve ter imaginado, surge para compor a vertente lógica ou moral do poder político, de modo que estamos falando do poder político que se apresenta como aglutinador de uma sociedade; aquele que permite a coesão social e que dá origem à unidade ou auto-reconhecimento de um grupo. A necessidade deste auto-reconhecimento surge do caráter absoluto que a própria coesão social impõe para que dê conta da mencionada “física dos riscos”. O valor ou lógica moral que fundam o elemento abstrato não deve ser palpável ou facilmente questionável; relativo: se assim fosse a comunidade estaria sempre ideologicamente ameaçada. E deu pra perceber que este fenômeno indica a busca incansável de um universo simbólico que garanta o máximo de segurança possível, pois o poder político que funda a sociedade precisa ser intenso, cumprir com máxima perfeição a sua dualidade fundamental. “Donde a ambigüidade tradicional do poder político, mistura indissolúvel de um elemento ‘temporal’ com um elemento espiritual”.

“Ora, Deus não é um fenômeno de crença, mas um fenômeno de lógica. Não é um fantasma, mas uma operação (...). Não há uma sociedade de não construa um sistema – entendamos por sistema um conjunto de relações externas cuja própria coerência supõe o fechamento”.

Fica fácil agora entender o fenômeno “Deus”: o valor que dá o fechamento horizontal (coesão social) precisa ser vertical, “vir de cima”. O caráter absoluto é elementar à disposição lógica, e ele, portanto não pode “vir de baixo”, pois se teria aí uma incoerência lógica intolerável à sensação de segurança coletiva, além de uma impossibilidade aritmética. Uma totalidade, para ser totalidade, precisa de limites que definam o seu alcance. Os limites são fornecidos por este fator vertical.


“O fechamento Horizontal tem por condição uma abertura na vertical: nenhum grupo humano pode se constituir sobre a base de uma simples relação em si”.

“Uma nação totalmente nova não se mantem em pé, nem se supera, pela livre associação de concidadãos de igual estatura. Há necessidade de altares ao pé dos quais é preciso reunir-se. Senão há dispersão”.

“O gesto fundamental da circunscrição territorial instaura simultaneamente o vazio e o cheio, e o sagrado é mesmo esse fechamento, sua crueldade paradoxal”.

“O primeiro gesto político é religioso, o primeiro gesto religioso é político”.

Wittgenstein, citado por Debray:

“Se existe um valor que tenha valor, é preciso que esteja fora de todo fato e de todo ser tal (so sein). Porque todo fato e ser tal são apenas acidentais. O que nos torna não-acidentais não pode se encontrar no mundo, pois de outra forma essas coisa também seria acidental. É preciso que essa coisa resida fora do mundo”.

O clérigo cumpre, portanto o papel de lembrar aos homens deste valor transcendente que os põe em comunhão, se incumbe da difícil tarefa de comunicar ao indivíduo sobre a sua subserviência frente a um “algo” superior que define a sua condição. Este é algo é, tanto aqui como em Durkheim, um poder político que deriva da própria sociedade.

“O clérigo é ao mesmo tempo tapa-buraco e sinal do ‘buraco’. Ele lembra aos homens que no meio deles há o ‘menos’, e que sua associação é o produto de uma falha ou subproduto de uma abstração”.


Notas.

1.“O Homem de Deus ou da política como função clerical”.


Rodrigo Lessa



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