A Economia segundo Damásio
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A Economia segundo Damásio



António Damásio

No recente artigo de António Damásio e Antoine Bechara: "The somatic marker hypothesis: A neural theory of economic decision", publicado pela revista Games and Economic Behavior, os autores fazem a ligação dos mecanismos neurais de tomada de decisão ao contexto da teoria económica. Esta aproximação entre as duas áreas de conhecimento é facilitada não só pelos desenvolvimentos recentes da neurobiologia mas também pelo facto da teoria económica ter derivado, nas últimas décadas, para um quadro de análise baseado na resposta do ser humano a incentivos.

No seu livro "O Erro de Descartes", Damásio já tinha referido que um dos testes experimentais utilizados para validar a sua hipótese do marcador somático (HMS), o jogo de cartas, simulava o ambiente da vida económica. Sobre este teste veja-se o post do Pura Economia Iowa Gambling Task.


Antoine Bechara

No artigo de Damásio e Bechara começa-se por fazer o ponto de situação das investigações neurológicas sobre os processos de tomada de decisão e a HMS, seguindo-se a demonstração de que "o conhecimento consciente, só por si, não é suficiente para a tomada de decisões vantajosas". Durante o processo de "aprendizagem" das regras do jogo de cartas, por exemplo, os jogadores começam a tomar uma percentagem maior decisões acertadas mesmo antes da descoberta consciente das regras do jogo.

A HMS, proposta com base em testes reais, faz também sentido em termos lógicos: é muito difícil, ou mesmo impossível para o cérebro humano, processar conscientemente toda a (muita) informação necessária a uma tomada de decisão vantajosa, particularmente quando, em situação de perigo (como terá acontecido ao longo da fase pré-histórica de desenvolvimento humano) é essencial decidir muito rapidamente.

Outra revelação do texto é a descrição de situações em que a participação do mecanismo emocional pode ser prejudicial à tomada de decisão:
«A HMS reporta-se a emoções que fazem parte integral da tarefa decisional em causa. Por exemplo, quando temos de decidir se devemos acelerar na auto-estrada porque estamos atrasados, o "pensamento" de vir a ser parado pela polícia ou o "pensamento" de poder sofrer um acidente desencadeiam estados somáticos emocionais (p.ex.: alguma forma de medo). Mas estes estados somáticos são integrantes da tarefa decisional em causa, isto é: acelerar ou não acelerar.
(...)
«Contudo, a indução de estados somáticos que não estão relacionados com a tarefa em causa (por exemplo, receber uma chamada telefónica sobre a morte de algum familiar enquanto se conduz) pode tornar-se disruptiva.»
Na aplicação da HMS à Economia, os autores partem da "assumpção dos economistas" de que as decisões decorrem da avaliação de resultados futuros de várias opções ou alternativas, através de algum tipo de análise custo-benefício": as emoções estão de fora. Ora a HMS fornece evidência à noção de que, frequentemente, as pessoas decidem na base de "palpites" e avaliação subjectiva das consequências.


Peter Drucker

Curiosamente há uma passagem num livro de Peter Drucker - "Memórias de um Economista" - onde se apresenta o exemplo dum velho patrão financeiro que contraria a análise da sua equipa de gestores, favoráveis a um investimento "infalível" apresentado por um homem de grande confiança, vindo-se depois a revelar que os gestores estavam enganados. Mais tarde o financeiro terá explicado a sua decisão: "desconfiei porque o tipo tinha respostas para tudo". Ou seja, o tipo de comportamento que costumamos rotular como "intuitivo".

Damásio e Bechara dividem os indutores de estados somáticos (ou emocionais) entre primários (p.ex.: encontrar uma cobra, ou a previsão de que se vai efectivamente encontrar uma) e secundários (p.ex.:a memória de ter encontrado uma cobra, ou imaginar a hipótese de a poder vir a encontrar). Estas situações podem ser transferidas para questões financeiras: receber a notícia de que se perdeu/ganhou dinheiro, ou prever que se vai efectivamente perder/ganhar (indutores primários) ou a memória de se ter perdido/ganho dinheiro ou colocar a hipótese de se vir a perder/ganhar dinheiro (indutor secundário).


Diagrama retirado do artigo "Deciding Advantageously Before Knowing the Advantageous Strategy" de Damásio, Bechara et al (Science, 1997) que resume as descobertas de Damásio e da sua equipa sobre a decisão instintiva e o marcador somático. [clique para ampliar]

Os indutores primários são desencadeados através da amígdala e são de curta duração, ou seja, são desencadeados sem grande esforço ou pensamento, antes mesmo de se ter consciência do que se passou. Os indutores secundários ocorrem no cortex ventromedial (CVM) a partir da reconstituição de imagens mentais. Em termos evolutivos, a amigdala é mais antiga, calculando-se que o referido mecanismo se desenvolveu para responder a situações de "luta ou foge". A zona do CVM é mais recente em termos evolutivos e embora seja mais sofisticada (envolve a noção de tempo futuro, da sua divisão em etapas, de antecipação de resultados e das tarefas necessárias em cada etapa, etç), a evolução manteve o mecanismo mais antigo, como é típico dos processos evolutivos. Embora menos sofisticados, os mecanismos associados aos indutores primários possuem a vantagem de ser mais rápidos ("raciocinar" é demorado.)

Outra proposta interessante é a explicação de paradoxos como o ser mais fácil realizar despesas com o uso de um cartão de crédito do que entregando directamente notas e moedas (dado o modo diferente como o CVM organiza a informação relativa ao que é "concreto/tangível" e ao que é "abstracto") ou o de tomarmos decisões diferentes (embora perante as mesmas probabilidades de ganhar ou perder) conforme esteja entre as opções uma "perda certa" ou um "ganho certo" - inconsistência que já tinha sido descoberta por Kahneman e Tversky e incorporada na sua Teoria da Prospectiva:


Amos Tversky

«A Teoria da Prospectiva sugere que os indivíduos tomam decisões irracionais, o que é contrário ao senso comum. (...) As pessoas simplesmente não gostam de perder. Por exemplo, as pessoas preferem um ganho seguro de 100€ a uma probabilidade de 50% de ganhar 200€ ou nada (ou seja, são adversos ao risco em face de um ganho seguro). Por outro lado, evitam uma perda certa de 100€ e optam pela hipótese com 50% de probabilidade de perder 200€ ou perder nada (ou seja, procuram o risco em face de uma perda certa). Esta observação contradiz os fundamentos da Economia actual, que retrata os consumidores como decisores racionais.


Daniel Kahneman

«As observações de Kahneman e Tversky foram engenhosas porque revelaram aspectos das escolhas económicas dos humanos que eram contrárias à sabedoria convencional. Contudo, a teoria não explicava porque é que os humanos decidiam daquela maneira; o modelo do marcador somático oferece umas explicação neurobiológica pela qual a informação que revela resultados seguros desencadeia respostas somáticas mais fortes do que a informação sobre resultados menos seguros. Portanto a certeza do ganho de 100€ desencadeia uma resposta somática mais forte do que a provável perda de 200€.

«Um ponto mais importante aqui, que provavelmente não foi abordado pela Teoria da Prospectiva, é que a "procura do risco" ou "aversão ao risco" podem ser modulados por estados somáticos "de fundo". i.e., estados somáticos pré-existentes desencadeados antes dos eventos económicos.»

(Damásio já tinha abordado este paradoxo no artigo "Investment Behavior and the Negative Side of Emotion")
Não deixa de parecer estranha esta forma de organização do processo decisional. No entanto, muitas outras descobertas da neurobiologia provam a coexistência, no cérebro humano, de mecanismos sofisticados de pensamento racional juntamente com outros de complexidade inferior. Tal é o caso de certos sinais de perigo, canalizados pela visão, que seguem um atalho para o sistema nervoso simpático (automático) antes mesmo de o cérebro consciente ter "pensado no assunto". Ou ainda o facto de um desenho de uma cara que nos olha influenciar o nosso comportamento, apesar de conscientemente sabermos que se trata só de um desenho.

[a continuar]



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