Emoções: regresso do filho pródigo
Economia

Emoções: regresso do filho pródigo



Texto publicado na revista DiaD, do jornal Público - 24 de Novembro de 2006

     As investigações que se estão a fazer no campo das neurociências, nomeadamente aquelas em que se procura compreender os processos de tomada de decisão, acabarão por ter consequências sobre a teoria económica. Os economistas, por pouco que isso lhes agrade, terão de o aceitar. Afinal, não foi a Economia que se aventurou por territórios alheios, procurando explicar fenómenos como o casamento ou o crime, com recurso às leis económicas e aos mercados?
     Os trabalhos de investigadores como António Damásio, com a sua proposta de uma maquinaria neuronal dupla – racional e emocional – a participar activamente nas decisões dos humanos, apresenta já evidentes pontos de contacto com a teoria económica, e muitas das suas experiências laboratoriais recorrem mesmo a jogos e simulações típicas da Economia. Uma das suas linhas de investigação é sobre se o ser humano é fundamentalmente egoísta ou não, o que constitui também um dos problemas centrais da teoria económica.
     Alguns críticos do postulado da racionalidade na teoria económica já começaram a citar estas investigações como sendo mais uma prova da fragilidade desse pilar da ortodoxia. As sugestões de que o ser humano é incapaz de uma racionalidade absoluta – desde logo, pela impossibilidade material de aceder e processar toda a informação relevante para uma decisão racional – são antigas. Mas agora que nos laboratórios dos neurocientistas, com recurso à maravilhosa (e cara) maquinaria da imageologia cerebral, se descobrem “provas” de que as decisões humanas “normais” são tomadas tanto com recurso ao pensamento racional como ao mecanismo das emoções, a balança pode bem começar a pender para o lado destes críticos. Mas será mesmo assim?
     Bem, pode até ser o contrário. Perante as evidentes limitações do pensamento racional foram propostas algumas variantes, tais como a da “racionalidade limitada”, segundo a qual o indivíduo não decidiria em função de todas as hipóteses possíveis, mas apenas de um conjunto limitado de variáveis, consideradas “mais relevantes”. No entanto, esta teoria não explica como é que se escolhem as variáveis “relevantes”: para o fazer teriam de se ponderar todas as hipóteses possíveis, o que nos remete para o início do problema. Noutras formulações diz-se que é através da tentativa e erro que os indivíduos se aproximam da “decisão racional” absoluta.
     E é aqui que o mecanismo das emoções, tal como é entendido por António Damásio na sua “hipótese do marcador somático”, pode vir em socorro do postulado da racionalidade. O marcador somático seria o instrumento privilegiado da tal aprendizagem por tentativas, ou da selecção das variáveis “relevantes”.
     Admito que esta ideia pareça fantástica, ou fantasiosa, mesmo para os defensores da ortodoxia. A ser verdade, isso significaria que o mecanismo das emoções tem uma capacidade superior para “aprender com o passado” e iluminar o futuro, e tudo isso com a ajuda de uma memória emocional que é provavelmente semelhante à que parece existir também em outros mamíferos. “Gato escaldado de água fria tem medo”, costumamos nós dizer, com desprezo, precisamente para ilustrar um comportamento exageradamente defensivo, apoiado numa avaliação não racional. Mas será que é mesmo exagerado? O pensamento racional acha que sim, mas neste caso é juíz em causa própria.
     Aparentemente o mecanismo das emoções precedeu o do pensamento racional em termos evolutivos. Isso quer dizer que teve muito mais tempo para se aperfeiçoar. E provavelmente consome menos energia que os circuitos da racionalidade - admite-se até que seja por isso que mais nenhuma espécie optou pela via da racionalidade. Quem é que quer um luxuoso mecanismo racional, de tal modo consumista que nos obriga a procurar mais comida, quando se pode conseguir o mesmo com um órgão mais simples? Até mesmo as limitações do pensamento racional podem estar relacionadas com problemas de “economia”: maior velocidade e mais variáveis em ponderação significariam uma despesa incomportável
     A história da economia está cheia de casos de sucesso decorrentes de comportamentos intuitivos, que se movem “não se sabe lá muito bem como”, frequentemente contra os conselhos da racionalidade prudente. Aceitar que isso decorra dum mecanismo “inferior”, o qual parece mais controlar-nos do que nós o controlamos a ele, mecanismo esse que, provavelmente, partilhamos com outras espécies animais – eis uma ideia que a sociedade não vai aceitar sem luta. Se não, qualquer dia ainda lhe vão dizer que formas de aprendizagem como a da recruta militar são o equivalente humano do adestramento de animais…
     No entanto, até nos actos mais vulgares do nosso dia-a-dia se apresentam mistérios que poderiam ser melhor explicados, e compreendidos, por essa nossa desprezada ferramenta. Porque é que demoramos tanto tempo a aprender a conduzir um automóvel, quando o pensamento é capaz de compreender a racionalidade da coisa em menos de meia hora? E quem é que toma as decisões quando guiamos “automaticamente” esse mesmo veículo por um percurso familiar, sendo evidente que a atenção foi apenas um passageiro distraído da viagem?




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