Economia
A dolorosa
Há algumas semanas Alexandre Marinis me chamou a atenção para um assunto até então pouco notado: o peso crescente das receitas extra-fiscais (dividendos de empresas estatais e receitas de concessões) na constituição dos superávits primários do governo federal. Mesmo relevando o caso mais patológico nesta área (os R$ 32 bilhões associados à “venda” de direitos de exploração de petróleo), tais receitas, que representavam algo como 14% do superávit médio no período 2003-2008, saltaram para 46% do saldo entre 2008 e 2010. Medidas a preços constantes de setembro deste ano cresceram de cerca R$ 10 bilhões em meados de 2008 para R$ 28 bilhões nos últimos 12 meses.
Esta evolução revela um segredo de Polichinelo: o esforço fiscal, em particular do governo federal, vem caindo consistentemente. Retirando as receitas extra-fiscais do cálculo do saldo primário, assim como despesas extra-fiscais (o depósito no Fundo Soberano em 2008, por exemplo), estimamos que o superávit federal tenha se reduzido de uma média equivalente a 2% do PIB entre 2002 e 2008 para pouco menos de 0,5% do PIB nos últimos dois anos. Se, com algum esforço de imaginação e muita boa-vontade, era possível fingir que a piora de 2009 devia-se à atuação contracíclica do governo, o desempenho de 2010 não deixa dúvidas que enfrentamos uma expansão fiscal persistente e considerável, da ordem de 1,5% do PIB.
Obviamente não faltará quem justifique que receitas são receitas, não interessa se sua origem seja tributária ou proveniente de fontes extra-fiscais, mas há problemas nada triviais com este argumento. É verdade que, no sentido de controlar a expansão da dívida relativamente ao PIB, qualquer trocado ajuda, mas a discussão de política fiscal no Brasil já passou deste estágio; debatemos hoje se a política fiscal auxilia o controle da demanda, reduzindo a pressão sobre a taxa de juros, ou se, pelo contrário, é fator adicional sobre esta variável.
Neste aspecto, não deveria restar dúvida que a natureza destas receitas é distinta da tributação. A começar porque receitas de concessões são eventos não-recorrentes, mais semelhantes à venda das joias da família do que uma fonte de rendimento constante. Assim como não é difícil concluir que uma família que venda seus bens para financiar seu consumo corrente irá inevitavelmente passar por dificuldades, também um governo que financie gastos adicionais pela venda de seus ativos irá, cedo ou tarde, enfrentar o momento da verdade.
Já no caso de dividendos, é bom lembrar que ao aumento do caixa do Tesouro corresponde uma redução do caixa das empresas públicas, ou seja, no setor público como um todo o efeito é nulo (ou negativo, pois há acionistas minoritários). Adicionalmente, parcela considerável do aumento dos dividendos recebidos pelo Tesouro resulta de operações cujo efeito fiscal é, na verdade, negativo.
Imagine, por exemplo, que eu compre uma mercadoria por R$ 10 e a venda a meu filho por R$ 6, que, por sua vez, a revende por R$ 7, me pagando R$ 1 como dividendo. No final das contas, mesmo com o dividendo, o prejuízo é de R$ 3. Esta operação pode parecer estranha, mas trata-se de descrição estilizada da origem dos dividendos pagos pelo BNDES ao Tesouro, financiados, em última análise por subsídios do próprio Tesouro. A diferença é que estes últimos não aparecem nas contas primárias, enquanto os dividendos sim, isto é, temos uma piora fiscal (R$ 3, no meu exemplo), disfarçada como melhora do saldo primário (R$ 1).
Resumindo, por trás das pirotecnias contábeis há uma piora apreciável das contas públicas, equivalente a 1,5% do PIB, cujo impacto esperado, segundo estimativas recentemente compiladas pelo Banco Central, seria de 0,5% sobre a inflação e 1,5% ao ano sobre a Selic.
Podemos fingir o quanto quisermos, mas, cedo ou tarde, a conta sempre chega.
(Publicado 24/Nov/2010)
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Valores em muitos bilhões |
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