Economia


Nassif se confunde e vou mostrar em que

Abaixo, sempre em itálico, entrecortado no texto do colunista Nassif, seguem meus comentários e correções à sua incorreta interpretação do trabalho de Kydland & Prescott.

LUÍS NASSIF

Os ciclos tecnológicos e a economia

Não conheço os trabalhos do norueguês Finn E. Kydland e do americano Edward C. Prescott, vencedores do Nobel de Economia.

As agências informam que eles receberam o prêmio pela contribuição ao desenvolvimento de novas teorias relativas aos ciclos e à política econômica, às flutuações cíclicas e suas conseqüências sobre as teorias econômicas.

Mais não disseram. Mas presumo que tenha algo a ver com as semelhanças entre o momento atual e o período mais comumente conhecido como República Velha -tema sobre o qual venho escrevendo nas últimas semanas.

Comentário: Caro sr. Nassif. Se não conhece os trabalhos – e honestamente reconhece que não – então deveria ser mais cuidadoso ao comentar o prêmio. Infelizmente, terei de corrigi-lo. Uma visão muito simplificada – mas útil para os leitores leigos deste blog está em um dos capítulos do livro de macroeconomia de Mankiw. Obviamente, o artigo clássico de 1977 (ver post abaixo) é útil e, claro, o senhor poderia consultar artigos sobre real business cycles. Vamos em frente.

A maneira como os fatos internacionais se interligam explica muito o que ocorreu tanto no início quanto no fim do século 20, nos períodos denominados liberal e neoliberal.

Nesses períodos, o mundo atravessara fase de grandes descobertas científicas, que evoluíram para inovações tecnológicas e o surgimento de novos setores na economia.

Os avanços provocam enorme liqüidez no mundo, e mudanças no sistema financeiro mundial, para reciclar esses ativos. É um movimento especulativo que se dá em torno de bolhas específicas, se esparrama para outros ativos e transborda a outros países. Em ambos os períodos, as bolhas surgem pela impossibilidade de estimar o potencial de crescimento das novas tecnologias. Criado o efeito manada, gera-se uma liqüidez endógena e a busca de ativos capazes de remunerar as expectativas crescentes dos investidores.

Comentário: Por não saber o básico, ou seja, a definição de “tecnologia” nos trabalhos teóricos dos autores (doravante, K&P), o senhor comete um erro sério aqui. Primeiramente, “tecnologia”, para K&P não são apenas “inovações tecnológicas”. Uma legislação que favoreça arranjos pouco favoráveis ao desenvolvimento econômico – como uma lei ambiental que desconsidere os incentivos para a eficiente realocação dos direitos de propriedade (pense numa barganha coasiana, por exemplo) – é, para K&P, uma forma de “choque tecnológico” negativo. Logo, quantos choques tecnológicos negativos existem neste período? Eu não consigo listá-los, até porque provavelmente diferem entre países (centrais, periféricos, etc), certo? Não confunda ciclos econômicos de um país com algum suposto meta-(mega-)ciclo mundial, sr. Nassif.

Além disso, não se deve partir para uma mistura da história com a teoria econômica como se ambas fossem a mesma coisa. Não são. Há diversas hipóteses sobre causas de ciclos econômicos e a de ciclos reais (doravante, RBC, seguindo o original em inglês) é apenas uma delas. Aliás, o qualificativo “reais” dos ciclos se deve ao aspecto tecnológico. Pois bem. Uma coisa é eu dizer que a “tecnologia” pode causar ciclos. Outra coisa é eu dizer que houve uma mudança tecnológica num período “liberal e neoliberal” (sic) e dizer que esta mudança foi responsável, por exemplo, por alguma “enorme liquidez no mundo”. K&P diriam que você tem de, primeiro, medir o choque de produtividade para depois analisar a história ou, no mínimo fazer as duas coisas juntas (claro, separando uma coisa da outra). Mas nada disso aparece neste artigo (ok, isso não caberia na Folha de São Paulo, neste espaço...). Vamos em frente.


Esse movimento abre as defesas do sistema financeiro internacional, que passa a abrigar indiscriminadamente capitais sem pátria e sem nome, que migram para esses países centrais e, a partir daí, são distribuídos para os diversos ativos financiáveis, até a seus países de origem.

Provavelmente os dois economistas devem ter se concentrado apenas nos efeitos sobre os países centrais. No caso dos emergentes, essa enorme liqüidez, a possibilidade dos investidores locais se associarem a esses fundos, provoca mudanças semelhantes nos dois períodos.

Comentário: Existe um insuspeito historiador – para os que não gostam de americanos (uma xenofobia boba, mas vamos lá, não é seu caso, nem o meu, mas muitos leitores podem entender isto) – francês, Paul Bairoch, que, num livro também anunciado neste blog, mostrou que esta história de “países centrais” e “países periféricos” não é assim tão robusta. Mesmo assim, suponha que eu aceite seu argumento. O trecho acima não tem nada a ver com o argumento, novamente porque K&P não são historiadores. Você pode até usar RBC para explicar o desempenho da história econômica mundial, sr. Nassif. Mas, convenhamos: se você mesmo disse que não leu nada deles, se não sabia da (obviamente problemática) definição de tecnologia de K&P, como pode dizer que os choques têm relação com uma (também problemática) divisão do mundo entre países “centrais” e “periféricos”? Prosseguindo...

No final do Império e início da República, há uma enorme expansão das companhias que se dedicam a explorar serviços públicos, especialmente devido ao novo papel assumido pelas cidades, com a urbanização acelerada. No final do século, são as privatizações.

Em ambos os casos, é necessário o livre fluxo de capitais, para permitir a maximização dos lucros dos investidores. Essa ideologia é espalhada a partir dos países centrais e se dissemina pelos emergentes. A volatilidade cambial acaba provocando uma apreciação do câmbio, com três efeitos. O primeiro, o de liqüidar boa parte das empresas brasileiras que tentavam substituir importações. O segundo, o de baratear a compra de bens de capital para os grupos maiores, ajudando a alavancar o período seguinte. O terceiro, um aumento substantivo do endividamento externo.

Há muito mais semelhanças nesses períodos. Até 1850, a Inglaterra aceitava capital de escravagistas. Até pouco tempo atrás, as legislações nacionais dos países centrais permitiam o livre fluxo de capitais, até de paraísos fiscais, impedindo uma diferenciação entre capital do crime organizado e de outras formas lícitas.
Em ambos os períodos, deve ter ocorrido um enorme fluxo de capital ilícito para os bancos internacionais. E um sem-número de operações suspeitas envolvendo os grandes bancos. A partir de um certo momento, ocorre uma depuração desses capitais, com os ingleses proibindo negócios com empresas que tivessem qualquer ligação com tráfico de escravos, e, agora, o enorme cerco ao dinheiro do narcoterrorismo.

Tudo reforça a sensação de que o país, dia a dia, se prepara para o grande salto similar, mas mais intenso, ao da Revolução de 30. Está tudo pronto para um reformador.
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Comentário: Sr. Nassif. Uma coisa são choques de produtividade: eu invento um tacape ou a roda. Outra coisa é um choque ideológico. Além disso, é errado supor que nos países “emergentes” (isto é sinônimo de “periféricos”?) não existiam empresários querendo maximizar lucros. Havia sim e o senhor pode ter uma boa noção disto lendo, por exemplo, o livrinho “Os Parceiros do Rei” do prof. José J. Senna. O fato de alguém querer ser mais feliz (algo obtenível através de mais dinheiro) com menor esforço não era exclusivo dos habitantes dos “países centrais”. Africanos vendiam africanos como escravos (novamente recomendo o livro do prof. Bairoch para detalhes), empresários brasileiros viviam (e vivem) tentando lucrar às custas do resto da sociedade, enfim, a questão não é tentar criar um novo homem (Mary Shelley tem um bom livro sobre isto...). A questão é se você cria instituições mais ou menos favoráveis a que estas ações gerem um desenvolvimento virtuoso ou não.

Repetindo: não se trata de importar uma ideologia de um país central como o socialismo e tentar impo-la a um português recém-chegado ao Brasil (que, aliás, veio de um país central). A questão é como, a partir do fato de que o senhor e eu queremos ser felizes (e, provavelmente, com algum dinheiro no bolso), criamos instituições que nos favoreçam como um todo. Uma lei que nos proíba de roubar – e que seja efetiva – pode ser melhor do que uma estatal que me favoreça às suas custas. Sem querer ser chato no recomendar, mas há um artigo do prof. Acemoglu (MIT) com mais dois autores, os profs. Johnson e Robinson, que mostra – claro que é discutível, há um debate sobre o tema – que o problema das ex-colônias é...a falta de capitalismo no início de sua colonização.

Um ponto adicional que me ocorreu: legislação escravagista. O Estado (que não é, por definição, liberal ou neoliberal, exceto se se mantiver mínimo...e é difícil saber que incentivos a raposa deve seguir para não devorar o galinheiro) aprovava o tráfico de escravos. Isto, para K&P, seria um choque tecnológico negativo, não? Na verdade, eu não sei, sr. Nassif, mas o senhor poderia fazer um comentário mais preciso se considerasse isto na sua análise histórica.

Quanto à necessidade do reformador, por favor, sr. Nassif. O pouco que eu o conheço não me permite pensar no que estou pensando, não é? Ambos somos aversos (ou avessos, como erradamente dizem os economistas, eu incluso) a ditadores.

Concluindo, eu diria que o senhor certamente faria um comentário muito mais útil para os leigos no assunto se realmente tivesse lido algum material sobre K&P antes. Este que o senhor fez acaba gerando mais confusão do que ajudando. Não me entenda mal, mas RBC é justamente algo que ensino na faculdade e sei bem sobre o que estou falando. Talvez não tanto quanto meus colegas, mas certamente o suficiente para lhe dizer que o senhor está no caminho errado. Nada que não seja facilmente ajustado. Basta tomar cuidado. É admirável sua honestidade em dizer que nada leu dos dois autores. Mas poderia ter parado por aí, né?



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