Economia


Existe vida inteligente na imprensa

E João Mellão Neto é um exemplo.

Para entender as eleições americanas - O Estado de S. Paulo, 05/11/2004 - João Mellão Neto

Desta vez, ao contrário do que ocorreu em 2000, George W. Bush venceu as eleições na soma dos votos populares. Sua vantagem foi de cerca de 3,5 milhões de votos sobre o candidato democrata.

Não faltam comentaristas, por aqui, para cantar em prosa e verso as excelências do sistema eleitoral brasileiro e tripudiar sobre o pretensamente ultrapassado e antiquado sistema americano. Ao menos quando se trata de eleições presidenciais, vige por aqui o sistema de "um homem, um voto". Já o sistema americano - fenômeno aparentemente inexplicável - não funciona assim. Vence quem tem a maioria no colégio eleitoral, e não quem obtém a maioria dos sufrágios populares. Em função dessa discrepância, não são poucos os analistas tupiniquins que se dispõem a dar aulas de democracia à América. Embora o nosso regime democrático tenha apenas 19 anos - enquanto o dos americanos já supera dois séculos -, nós nos sentimos "superiores" a eles no que tange às qualidades de nosso sistema.

Como reza o ditado, para todos os problemas complexos e intrincados existe uma solução simples, clara e inequívoca. E esta solução é justamente a errada...

O colégio eleitoral norte-americano já serviu para a eleição de quatro dezenas de presidentes. Não foram raras as denúncias de fraudes nos distritos eleitorais. Em várias ocasiões o presidente eleito teve menos votos populares que seu adversário. Não obstante isso, em nenhuma ocasião algum analista sério ousou questionar a sua legitimidade. Se o colégio resistiu ao implacável "teste do tempo" é porque, na verdade, não é tão absurdo como se diz alegremente por aqui.

Quem prega a extinção do colégio eleitoral americano o faz por ignorar completamente a história dos Estados Unidos. Nada, no mundo das relações humanas, existe em vão. Por mais absurdas que pareçam, as instituições de uma nação são sempre fruto de um processo de maturação e depuração que se estabelece através do tempo e da experiência acumulada por seu povo. Nesse sentido é válido afirmar que, se o colégio eleitoral não existisse, nem sequer seria possível a existência da uma nação muito propriamente chamada "Estados Unidos da América".

Prestemos atenção ao detalhe: são "Estados Unidos", e não "Estados Unificados". E aí reside toda a diferença. Quem se deu ao trabalho de ler Os Artigos Federalistas - possivelmente o melhor compêndio de ciência política já publicado - há de se dar conta da gigantesca luta que se travou, entre 1787 e 1788, para que as então 13 colônias viessem a se constituir num só país. Eram 13 culturas diferentes, com origens diferentes e aspirações diferentes. A aceitação de um presidente comum a todas só se poderia dar se este fosse eleito, de forma independente, Estado por Estado. Estabeleceu-se para tanto que, a cada quatro anos, num dia determinado, todos os cidadãos em cada um dos Estados fossem às urnas e escolhessem o "seu" presidente.

Os presidentes dos Estados Unidos não se elegem pelo voto majoritário da nação, mas sim pelo voto majoritário em cada Estado. Assim sendo, se na Califórnia, por exemplo, o candidato vencedor é o do Partido Democrata - mesmo que o seja por estreita margem -, o "presidente" escolhido pela Califórnia é o do Partido Democrata e, assim, ele carrega consigo todos os 55 votos a que a Califórnia tem direito no colégio eleitoral. Se o vencedor na Flórida for o candidato republicano, o "presidente" escolhido na Flórida leva ao colégio todos os 27 votos que a Flórida tem. Como os 50 Estados têm populações diferentes em tamanho e, por outro lado, nenhum Estado pode ficar sem representação, resolveu-se a questão estabelecendo um número de delegados por Estado, de acordo com o número de representantes que cada um tem no Congresso Nacional. Como cada Estado tem, no mínimo, um deputado e dois senadores, a representação mínima no colégio eleitoral é de três delegados.

Aos brasileiros esta matemática soa estranha, principalmente porque nossa História foi bem diferente. Aqui surgiu primeiro a nação, que foi posteriormente subdividida em províncias sem nenhuma autonomia, que, com o advento da República, foram transformadas em Estados. Nos EUA havia, a princípio, os Estados, todos autônomos, que resolveram unir-se e formar uma nação. Cada Estado, assim, preservou grande parte de sua independência e delegou uma parcela dela à União.

Daqui para diante, o que existem são formalidades. Reza a Constituição que, no dia 13 de dezembro, os 538 delegados, reunidos em cada Estado, transmitirão seus votos ao Congresso. No dia 6 de janeiro, os votos serão oficialmente contados e o candidato que somar 270 votos ou mais será considerado eleito pelo Senado. No dia 20 de janeiro, às 12 horas, toma posse o novo presidente.

Se alguém imagina que, por causa dos problemas ocorridos nas eleições de 2000, o colégio eleitoral venha a ser abolido, pode esquecer-se disso. Essa instituição é justamente a base do pacto federativo, o cimento que mantém unidos os Estados e lhes garante o status de nação.

As instituições são tudo para uma nação. Douglass North, Nobel de Economia, defende que são elas, inclusive, que determinam o sucesso ou o fracasso econômico dos povos. Não ousemos confrontá-las. Alguém, com muita propriedade, já as comparou a fios de alta tensão. À primeirs vista são inofensivos. Mas ai de quem se arrisca a tocá-los! É prontamente fulminado por milhares de volts...


João Mellão Neto, jornalista, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado.

Nota mental do Shikida: os "Artigos Federalistas" foram (bem) traduzidos para o português na bela edição da Nova Fronteira. Vale a pena ler isto. Aliás, vale a pena ler muita coisa de norte-americanos da época da colonização/independência.



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