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Revista Veja - Em foco: Gustavo Franco

Um câmbio de esquerda

"É curiosa a esquerda no Brasil: parece mais
nacionalista do que propriamente esquerdista"

No dia 18 de novembro de 2004 a taxa de câmbio média ficou em 2,76
reais por dólar (na compra). Em 31 de dezembro de 1998 era 1,21. Como
a inflação acumulada entre essas duas datas, medida pelo IGPM, foi de
120%, teríamos que, em dinheiro de hoje, 1,21 real seria equivalente
a 2,68 reais. Repetindo o exercício usando o IPA, o índice de preços
por atacado, normalmente empregado em cálculos desse tipo, o número
seria 3,17 reais. O que é isso? Voltamos ao ponto de partida?

Com efeito, de acordo com cálculos da Funcex, entidade mantida pelos
exportadores brasileiros, há anos uma referência indiscutível nos
assuntos de comércio exterior, a taxa de câmbio real (ou seja,
ajustada pela inflação) está mais ou menos no mesmo nível em que
estava no fim de 1998, quando se diziam (os economistas do PT diziam)
horrores da política cambial. Curioso, não?

Na verdade, curioso mesmo é notar que para a mesma taxa de câmbio
real o Brasil exportará algo como 88 bilhões de dólares em 2004,
contra 50 bilhões em 1998, ao passo que, do lado das importações, os
valores para 2004 e 1998 serão semelhantes, na faixa de 55 bilhões de
dólares.

Para esse fenômeno da explosão das exportações existem pelo menos
duas explicações: de um lado, o fato de que hoje somos um país
melhor, mais produtivo e competitivo do que antes da onda de reformas
dos anos 90, e por causa dela. De outro, as contas sobre câmbio logo
acima estariam erradas, pois se usarmos o IPCA em vez do IGPM ou IPA
chegaremos à conclusão de que o problema era o câmbio mesmo e essa
conversa de produtividade é desculpa de país com defasagem cambial,
como dizia o inesquecível professor Dornbush.

Deve haver pouca dúvida de que as premissas da primeira explicação
estão corretas: o crescimento da produtividade até 1999 foi
fenomenal, o que se explica pela reação das empresas brasileiras ao
novo ambiente de competição criado pela combinação de abertura,
privatização, estabilização e reformas que aproximou o Brasil do
figurino de uma economia de mercado. Uma hora de trabalho na
indústria em 1999 produzia 68% mais mercadorias que no início da
década.

Para quem gosta dessas explicações "estruturais" para a nossa
competitividade, o enigma a decifrar é por que a explosão das
exportações começou apenas em meados de 2002, e não antes. Aliás, os
que explicam tudo pelo câmbio também têm certa dificuldade com
esse "timing", e também em explicar por que o crescimento médio anual
das exportações em 1999 e 2000 (3,8%), seguindo-se à desvalorização,
foi quase igual ao observado em 1996-1998 (3,5%), quando o câmbio
estava, como se dizia, "defasado".

A relação entre câmbio e exportação nada tem de evidente, e as duas
explicações acima possuem méritos: o aumento de produtividade
certamente ajudou muito, mas também a notável redução dos salários
medidos em dólar (hoje estão a 40% do que estavam em 1998) produzida
pela desvalorização cambial. É inútil discutir sobre qual dessas
influências é mais relevante; interessante é especular sobre o que é
mais desejável, ou seja, se queremos basear nossa competitividade em
trabalho barato ou em eficiência.

O caminho da eficiência pode parecer mais longo, mas tem sobre o
outro a vantagem de produzir competitividade simultaneamente a
aumento de salário, o contrário do que ocorre quando trabalhamos com
câmbio subvalorizado (ou excessivamente depreciado). Podemos,
portanto, buscar competitividade melhorando ou piorando a
distribuição da renda, e a pergunta é se o governo vai retomar
reformas pró-mercado que aumentem a competição e a produtividade ou
se, alternativamente, vai buscar uma taxa de câmbio mais agressiva
(desvalorizada), como querem alguns setores mais radicais do PT.

É curiosa a esquerda no Brasil: parece mais nacionalista do que
propriamente esquerdista, pois em nome da redução da "dependência
externa", real ou imaginária, aceita com tranqüilidade, ou mesmo
propõe, arrochar salários por meio de desvalorização do câmbio para
aumentar nossa competitividade. Felizmente a política do ministro
Palocci vai na outra direção. Afinal, esse governo é de esquerda.

Gustavo Franco é economista da PUC-RJ e ex-presidente do Banco
Central ([email protected]; www.gfranco.com.br)



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