«Deixem-me dizer uma pequena palavra em favor da sociedade actual. Eu sei que não é grande coisa. [...] Os seus críticos são muitos e todos têm muita razão em muito do que dizem. Os jovens ridicularizam e odeiam a sociedade. A esquerda despreza-a por trair os ideais da revolução, a direita detesta-a por ela abandonar os princípios da tradição. Os cristãos consideram-na pagã, os ateus condenam-na como cristã, outros dizem que é coisa nenhuma. Os ecologistas chamam-lhe suja, os intelectuais tomam- -na por estúpida e os empresários apelidam--na de paralisante. O Governo sabe como reformá-la e a oposição opõem-se a tudo menos à necessidade de reforma. Nada é mais desprezado na sociedade actual do que o sistema económico. Vilipendiado por ministros e eleitores, professores e domésticas, empresários e sindicatos, o sistema económico é a raiz de todos os males. Todos o querem espartilhar por leis, processar nos tribunais, enlamear nos jornais, substituir por "comércio justo", "economia solidária", "de-senvolvimento sustentado". Poderosos e humildes, militantes e transeuntes, consumidores e cidadãos, todos o vemos como alvo, réu, vítima. E todos temos razão no que dizemos. Mas a sociedade e o sistema actuais têm uma enorme vantagem em relação a todos os nossos anseios e desejos, ideias e princípios, sonhos e projectos, planos, políticas e propostas. Eles existem. Eles são. Todas as alternativas parecem melhores que a sociedade, mas ela é tudo o que temos. Também é graças ao sistema económico que, apesar das críticas, todos comemos, sobrevivemos, e até prosperamos. É ele que nos dá todos os meios que usamos, até para o atacar. Sem o sistema económico como ele é, não haveria sequer críticas ao sistema económico. Mesmo que um dia consigamos gostar da sociedade e do sistema - o que até hoje nunca sucedeu -, não devemos esquecer que isso só será possível graças à potencialidade do que temos. Só melhoraremos porque a sociedade actual o permite. [...]» João César das Neves "A simples vantagem de existir" |