Mistificações de um jugular
Economia

Mistificações de um jugular


Infelizmente, a recusa em aceitar a realidade e substitui-la por uma narrativa fantasiosa continua a proliferar. Um exemplo característico dessa cegueira é um recente post de João Pinto e Castro no blog Jugular intitulado "A austeridade é o tributo que pagamos a Wall Street", onde começando por recordar que Portugal tinha "apenas" um défice de 2,8% e que a Espanha e Irlanda tinham contas públicas equilibradas resume assim a sequência de recentes acontecimentos económicos: "a desregulação do sistema financeiro americano colocou o mundo à beira do abismo; com maior ou menor felicidade, os estados deitaram a mão aos bancos e esforçaram-se por estimular a procura, o que implicou uma transferência dos problemas do sector financeiro para o sector público; estamos agora na fase em que os governos apresentam a factura aos respectivos povos". E, a situação económica e financeira que Portugal actualmente enfrenta seria consequência do que designa por "desvarios de Wall Street".

Claro que isto não só não explica o fraco crescimento de Portugal no período até 2008 e a acumulação de défices externos (sistematicamente próximos dos 10% do PIB) e do endividamento que nos deixaram particularmente expostos aos "humores" dos mercados financeiros internacionais, como não explica porque a actual situação não é idêntica em todos os países e porque razão a crise financeira afecta de forma particularmente grave a Grécia, Irlanda, Portugal (onde felizmente até agora o impacto das medidas de apoio à banca foi limitado) e Espanha. Pessoalmente, considero que embora haja alguns pontos em comum se tratam contudo de quatro histórias diferentes e que temos muito a aprender com a análise das diferentes trajectórias económicas e financeiras de cada um destes países pelo que neste post me concentrarei na situação portuguesa.

Um dos pontos fundamentais do post de João Pinto e Castro é o de mistificar a verdadeira situação orçamental de Portugal no periodo até 2008, ponto obviamente essencial para "demonstrar" a origem inteiramente externa da actual situação.

Ora, contrariamente ao que refere João Pinto e Castro, é mentira que em 2008 Portugal tivesse uma situação orçamental equilibrada. Na verdade, de acordo com os dados da AMECO desde 2000, Portugal apenas teve défices inferiores a 3,0% em 2002 (2,9%), 2007 (2,7%) e 2008 (2,9%). Ou seja, durante a última década nunca conseguimos ficar a mais de 0,3 pontos percentuais do limite máximo para o défice, o que significa uma total ausência de margem de manobra para enfrentar os efeitos de uma  ainda que pequena desaceleração da economia mundial. Também a evolução da dívida pública (de acordo com a mesma base) é elucidativa revelando um aumento do rácio da dívida bruta de 52,9% do PIB em 2001 para 66,3% do PIB em 2008: um aumento de 13,4 pontos percentuais que compara com uma subida de somente 1,4 pontos percentuais no conjunto da zona euro.

A verdadeira situação orçamental portuguesa torna-se ainda mais evidente quando consideramos que aqueles números não incluem os efeitos das famosas parcerias público-privadas e concessões que, com excepção daquelas da área da energia, correspondem a uma assunção de encargos futuros, em substância equivalentes a dívida para a realização de investimento público e cujos investimentos totais acumuladoa (incluindo energia) no final de 2008  ascendiam, de acordo com informações da DGTF, a cerca de 28,137 mil milhões de euros e que como é sabido correspondem a encargos orçamentais com efeitos muito significativos (equivalentes a vários submarinos) e que irão aumentar substancialmente nos próximos anos .

Finalmente esquece (ou tenta branquear) a desastrosa estratégia orçamental nos últimos dois anos e em particular em 2009 em que por incompetência e/ou eleitoralismo o défice se agravou 6,5 pontos percentuais (para 9,4%) valor que é significativamente superior ao registado no conjunto da zona euro onde esse agravamento foi de "apenas" 4,3 pontos percentuais (para 6,3%). Sendo que, sempre de acordo com a AMECO, o agravamento do défice ajustado do ciclo foi de 5,4 pontos percentuais valor que compara com apenas 1,9 pontos percentuais para o conjunto da zona euro, o que (com todas as limitações que as metodologias utilizadas têm) aponta para que, contrariamente ao que sucedeu na zona euro, a maior parte do agravamento do défice terá resultado de medidas discricionárias (ou da falta de controlo da execução orçamental) e apenas uma pequena parte (0,9 pontos percentuais) dos efeitos do "papão" da crise internacional motivada pela ganância dos "mercados financeiros".

Concluindo, para usar a expressão de João Pinto e Castro chegámos até aqui porque tivemos um crescimento económico fraco que revela debilidades estruturais que não fomos capazes de superar e que foi um dos factores que alimentou um elevado nível de défice externo e de endividamento nacional (até 2008 sobretudo privado mas com forte componente pública e a partir de 2009 quase exclusivamente público) que nos colocou numa posição demasiado exposta aos mercados financeiros e porque fomos incapazes de fazer uma verdadeira consolidação orçamental ficando sem qualquer margem de manobra para enfrentar quaisquer adversidades que eventualmente surgissem.  A crise internacional encontrou-nos numa situação particularmente frágil e antecipou um ajustamento que era inevitável, tornando-o mais doloroso, e que por eleitoralismo e grave erro de avaliação da verdadeira situação económica e financeira nacional e internacional o Governo agravou pela forma como geriu as finanças públicas.

PS: Estamos num estranha situação em que às segundas, quartas e sextas o Governo se orgulha de termos tido um dos melhores desempenhos económicos de toda a Europa e nos outros dias da semana se queixa de ter sido vítima da evolução económica por força da recessão internacional. Claro que se pode argumentar que a razão para esse melhor desempenho em termos relativos radica precisamente em ter deixado aumentar o défice (o que é em parte verdade) mas então forçoso seria que reconhecessem que a gravidade da actual situação resulta de um sério erro estratégico e de avaliação (o que ainda não vi suceder).



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