Malditos recursos! (Cristiano Souza e Alexandre Schwartsman)
Economia

Malditos recursos! (Cristiano Souza e Alexandre Schwartsman)


Uma observação curiosa no estudo do crescimento econômico é que países ricos em recursos naturais não parecem conseguir fazer bom proveito dos mesmos e acabam por apresentar baixas taxas de expansão. Esse fenômeno foi batizado na literatura econômica de maldição dos recursos naturais e sua ocorrência em Angola, Camarões, Chade, Congo, Nigéria, Serra Leoa, produtores de petróleo no Oriente Médio já está documentada. Por outro lado, Botswana e Noruega provam que essa maldição não é destino inescapável.

A literatura reconhece que o crescimento pode ser afetado negativamente pela maldição de recursos naturais por diferentes canais, a saber: 1) doença holandesa; 2) “rent seeking” ou desvio de recursos de atividades economicamente frutíferas por quem detém o poder no país; 3) redução de incentivos para a acumulação de capital humano em função de rendas que não advêm de salário (transferências, gastos sociais); 4) abandono da boa administração econômica em face do alto fluxo de recursos; e 5) diminuição dos incentivos para poupar e investir. Em alguns países um fator (ou a combinação deles) levou a anos de guerra civil.

Comumente confunde-se a maldição dos recursos naturais com a doença holandesa. Esse fenômeno recebeu esse nome em função dos efeitos das descobertas de gás no Mar do Norte no final dos anos 50 sobre a economia holandesa: apreciação da moeda; estagnação na produção industrial (ou até desindustrialização); diminuição dos investimentos privados; aumento do desemprego; queda nos lucros como proporção da renda nacional; e reversão do déficit médio em transações correntes. Porém, essa é apenas uma das formas de contágio da maldição dos recursos naturais.

O debate acerca da possibilidade do Brasil ter sido afetado pela maldição dos recursos naturais, especificamente pela doença holandesa, ocorre desde 2004. Nesse período, a taxa de câmbio mostrou tendência contínua de apreciação (exceto por breve período de agravamento da crise internacional em fins de 2008 e início de 2009) e se fortaleceu 34% contra uma cesta de 13 moedas (pesos argentino, chileno e mexicano; dólares americano e canadense; renmimbi; won; rúpia indiana; iene; libra esterlina; novo dólar de Taiwan; bolívar; e euro), concomitantemente ao crescimento dos preços das commodities.

A observação de alguns dados macroeconômicos leva à rejeição dessa hipótese: a produção industrial de bens manufaturados cresceu em todos os anos entre 2004 e 2008 à taxa média de 4,6% ao ano, não só mais alta que a observada anteriormente, mas também mais próxima à produção global; as exportações físicas desses bens cresceram 7% ao ano em média e a única retração no período ocorreu em 2008, já em função da crise. Ademais, a produção de bens de capital para fins industriais cresceu 8,3% ao ano. Logo, é difícil defender a ocorrência da doença holandesa no Brasil entre 2003 e 2008 à luz da evidência empírica.

É verdade que a simples observação dos dados não constitui prova definitiva para rejeitar a possibilidade. Exercícios estatísticos mais rigorosos efetuados por um dos autores [claro que se trata do Cris, o único entre nós capaz destas coisas. Na verdade é a tese de doutorado dele], que levam em conta a relação entre as variáveis citadas e diversos fundamentos da economia brasileira (diferencial de juros, variáveis fiscais, abertura da economia, diferencial de produtividade, risco-país, desempenho do comércio internacional, política monetária, renda doméstica), revelam relação negativa entre os preços de commodities e a taxa real de câmbio, porém não evidenciam impacto negativo desses preços sobre exportações ou produção de bens manufaturados. Assim, ainda que haja boas razões para crer na relação negativa entre preços de commodities e taxa real de câmbio, a evidência empírica não sugere que isto tenha levado à desindustrialização.

Ressalta-se ainda que o Brasil possui ampla base produtiva e as commodities representam apenas cerca de 7% do PIB do país e 20% dos produtos agropecuário e industrial combinados. Trata-se de fração reduzida para representar perigo à economia similar ao enfrentado por países mais dependentes de recursos naturais como Chile, Rússia ou Noruega.

Pensando à frente, o temor com relação à maldição dos recursos naturais poderia ser justificado em função dos recursos do pré-sal. O volume de petróleo que pode até dar ao Brasil um lugar na OPEP deve gerar enorme volume de entrada de divisas daqui a uma década. O desafio residirá em como gerir esses recursos, mas há exemplos positivos que podem ser seguidos.

Chile e Noruega, por exemplo, criaram fundos de investimentos onde depositam os recursos provenientes da venda de seus recursos naturais. Em épocas de reversão de ciclos de expansão econômica, como vivemos atualmente, esses recursos podem ser usados em verdadeiras políticas anticíclicas para estimular a economia, a exemplo do que tem feito o governo chileno. Um fundo que restrinja a entrada de grande volume de recursos também pode ser eficiente para evitar redução nos incentivos para a acumulação de capital humano limitando aumentos de transferências diretas. Incentivos para diminuir a poupança e investimentos também poderiam ser evitados.

No entanto, a criação de fundos não é uma vacina contra a maldição de recursos naturais e pode, na verdade, dar ensejo a outras variantes do problema.

Talvez as mais sérias dentre essas sejam o “rent seeking” e a corrupção. Dados os imensos recursos à disposição nesses fundos, é inevitável que determinados grupos tentem se apropriar privadamente dessa riqueza, não raro apresentando suas demandas particulares como representativas de toda sociedade. O desafio, portanto, é a definição de um marco legal que impeça esse desenvolvimento por meio de mecanismos de supervisão que permitam à sociedade controlar o uso desses recursos, limitando o poder do governante de plantão.

Por fim, o governo não pode confundir o fluxo de recursos advindos de uma descoberta de recursos naturais com entradas permanentes de divisas a ponto de abandonar boas práticas na condução da política econômica. A combinação de taxa flutuante de câmbio, responsabilidade fiscal e meta de inflação foi essencial para garantir a estabilidade macroeconômica na última década e se fará necessária nas próximas também.

Em suma, não há evidência que o Brasil tenha sido afetado pela maldição dos recursos naturais — via doença holandesa — ao longo dos últimos cinco anos. No entanto, a maldição ainda pode se manifestar de outras formas no futuro próximo em vista da possibilidade da exploração de enorme volume de petróleo. Há formas de evitá-la, e devem ser garantidas desde já.

(Publicado 4/Nov/2009)



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