Inflação versus desemprego
Economia

Inflação versus desemprego



Por Antonio Delfim Netto


Em 1958 um arguto economista neozelandês, Alban William Phillips (1914-1975), publicou um artigo intrigante e, de certa forma, revolucionário. Usando dados da Inglaterra de 1861 a 1957, "descobriu" que a relação entre a variação da taxa nominal dos salários (inflação) e a taxa de desemprego era negativa: quando o desemprego era alto a inflação era baixa e vice-versa. Quase imediatamente, Paul Samuelson e Robert Solow construíram a mesma curva com dados da economia americana de 1900 a 1960 e "confirmaram" a relação negativa. O sucesso dessa construção entre os keynesianos foi imediato: ela seria a relação "faltante" que "fecharia" o modelo de Keynes, permitindo aos governos escolher entre a taxa de inflação (ou seja, os aumentos nominais de salários) e o nível de desemprego. Com políticas públicas sociais e econômicas adequadas seria possível manter a taxa de inflação desejada com um nível de desemprego civilizado. A alegria durou pouco. Artilheiros de alto calibre puseram em dúvida a existência da curva. Não pode haver relação estável entre uma variável real (a taxa de desemprego) e uma variável nominal (a taxa de inflação medida pelos salários nominais), porque no longo prazo as variáveis reais são determinadas por forças reais. Mais complicado ainda era o fato de que, uma vez introduzida no modelo a "expectativa" da inflação futura, existiria uma "família de curvas" correspondente a cada uma delas. A conclusão é que quando a inflação realizada fosse igual à esperada, o nível de emprego seria a sua "taxa natural", ou seja, o desemprego estrutural.

Reduzida à sua forma mais simples, a taxa de inflação realizada seria igual à taxa de inflação esperada corrigida por um fator que explicita a diferença entre a taxa "natural" (ou estrutural) do desemprego e o seu nível. Essa correção é positiva (isto é, a taxa de inflação cresce se a taxa de desemprego é menor do que a "natural") e negativa em caso contrário. Em outras palavras, nesse modelo ultrassimplificado, é o aumento do desemprego que reduzirá a taxa de inflação. O argumento mostra a importância de se conhecer como se formam as "expectativas". Se são adaptativas (os agentes olham o passado e cometem erros), a curva de Phillips pode ser negativa no curto prazo, mas no longo prazo (quando os agentes aprenderam), ela será vertical, no nível do desemprego "natural". Se as "expectativas" são "racionais", a distinção entre curto e longo prazo desaparece porque os agentes, por construção, não cometem erros... Em qualquer dos casos, a escolha entre taxa de desemprego e taxa de inflação que confortava alguns keynesianos desaparece. Como é evidente, a taxa de desemprego "natural" só pode ser alterada por medidas estruturais (oferta) que flexibilizem e tornem mais eficiente o mercado de trabalho. Ela só pode ser violada no curto prazo pela ampliação da demanda, à custa de uma aceleração da taxa de inflação.
Tudo isso, depois da pavorosa crise de 2008 que ainda nos espanta, parece parte de um passado longínquo onde os keynesianos envolveram-se em trapalhadas e os monetaristas das expectativas racionais acreditavam que o desemprego não era muito mais do que um ataque de vagabundagem que, ciclicamente, atingia os trabalhadores!
Essa rápida história sugere como devemos ser humildes na formulação de soluções simples para o fenômeno inflacionário que estamos vivendo. Ele é o radiador que dissipa não apenas o calor gerado por um excesso de demanda ou falta de oferta, mas pela desarticulação logística produzida por 30 anos de descaso com os investimentos em infraestrutura.
O furo é, certamente, mais embaixo. A revista "Economia Aplicada" (16 (3) 2012:475-500) que acaba de ser publicada, traz um competente artigo de três economistas do Ipea (Mario Mendonça, Adolfo Sachsida e Luis Medrano), "Inflação versus Desemprego: Novas Evidências para o Brasil" onde se procura estimar a Curva de Phillips Novo-Keynesiana para o Brasil. Trata-se de trabalho cuidadoso que utiliza dados mensais de janeiro de 2002 a março de 2012 submetidos a um hábil tratamento econométrico. Analisam, também, um subperíodo de janeiro de 1995 a março de 2012. A curva construída inclui como variável dependente a taxa de inflação do ano e como variáveis "explicativas" a inflação do ano anterior, a estimativa de inflação para o ano seguinte, uma variável que represente o "custo marginal" (de fato a taxa de desemprego) e outra que represente um choque de oferta (de fato, a taxa de câmbio).
As principais conclusões do excelente trabalho são as seguintes:
1) um único resultado permaneceu robusto aos diversos experimentos: a expectativa de inflação e a inflação passada têm relevância na dinâmica do processo inflacionário. O papel das expectativas parece aumentar no período mais recente;
2) com relação ao desemprego, seu impacto de curto prazo sobre a inflação depende do conjunto de variáveis representativas ("próxies") adotadas. Na maior parte dos casos essa relação foi negativa, como era esperado. Já no longo prazo esse efeito torna-se difícil de ser captado, dando a impressão de ser nulo ou pouco relevante na formação do processo inflacionário. De qualquer forma e em qualquer dos casos, o efeito real da taxa de desemprego sobre a inflação foi próximo de zero;
3) o processo inflacionário brasileiro parece não guardar relação próxima com a Curva de Phillips Novo-Keynesiana. Isso é de especial relevância porque a grande maioria dos "macromodelos" da economia brasileira assume formatos parecidos com ela ao descrever a inflação.
É por isso e muito mais que, quando sugere cautela antes de apressar-se a aumentar a taxa de juro real, mas demonstra disposição de fazê-lo se necessário, a autoridade monetária brasileira está mais afinada com o mundo real do que os seus críticos.
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras




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