Ilusão monetária
Economia

Ilusão monetária


Os 17 leitores já devem ter percebido minhas obsessões. Uma delas é a implicância com a “análise” econômica que desrespeita os dados. Não são poucos os que formulam uma hipótese sem se dar ao trabalho de verificar se os sinais da realidade exterior correspondem minimamente ao que se passa na mente torturada do analista. Exemplos abundam, da “desindustrialização precoce” à prevenção da crise pela manutenção de saldos positivos em conta corrente, todos devidamente desmentidos pelos fatos.

Em face deste histórico não é possível alegar surpresa quando heterodoxos tecem loas ao modelo macroeconômico argentino, supostamente uma alternativa “chinesa” à estratégia brasileira. Tal política se caracterizaria pela manutenção da taxa real de câmbio num nível “competitivo”, política que conseguiria, clama-se, superar a restrição de poupança doméstica. Não é também surpreendente notar que, mais uma vez, a distância entre hipótese e realidade tenha que ser medida em parsecs.

De fato, a política do BCRA tem sido, há muito, manter a taxa de câmbio num patamar aproximadamente constante, corrigindo-a periodicamente. Tomando arbitrariamente como base a taxa média de câmbio de 2003 (a escolha do período é irrelevante), observa-se no gráfico uma quase fixação do câmbio desde aquele momento. Comparado ao segundo trimestre de 2003, quando a moeda se estabilizou após o descontrole de 2002, o câmbio desvalorizou-se 8%, refletindo precisamente o regime monetário-cambial adotado pelo país.

No entanto, a inflação não desapareceu. O deflator do PIB (disponível até o terceiro trimestre de 2008) mostra a inflação na casa de dois dígitos desde meados de 2005 e em torno de 20% ao ano nos últimos quatro trimestres. Ajustando-se a taxa de câmbio à diferença entre a inflação argentina e americana vê-se que a aparente estabilidade da taxa de câmbio nominal oculta forte valorização real da moeda, da ordem de 22%, entre o segundo trimestre de 2003 e o terceiro trimestre de 2008.

Consistente com a apreciação cambial, a demanda doméstica cresce 1,7% ao ano à frente do PIB desde o final de 2003 (ambos medidos a preços constantes, dado que não é possível usar os dados a preços correntes sem esbarrar em problemas sérios no caso de países com inflação elevada). Assim, ao início de 2003 a demanda doméstica correspondia a pouco mais de 91% do PIB, enquanto no terceiro trimestre do ano passado já superava o PIB em 0,7%. O investimento aumentou (de 12% para 23% do PIB no período), tendo, porém, como contrapartida a queda de 8% do PIB do saldo em conta corrente, o resto financiado pela queda do consumo do governo (esta sim, a lição que poderíamos aprender).

A evidência, portanto, refuta as teses sobre competitividade cambial e aumento da poupança. A “análise” repousa sobre dados que simplesmente desconsideram os efeitos da inflação sobre a competitividade externa e contas nacionais. Fingir que a inflação não existe é cômodo, mas resulta em ilusões que não resistem a um pouco de rigor no tratamento dos números.



(Publicado 4/Fev/2009)

P.S. No gráfico original a legenda estava trocada. Agradeço ao Gabriel Gava que não apenas percebeu o problema, como ainda mandou uma versão correta.




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