Um dos debates sobre teoria econômica e análise comparativa de sistemas econômicos mais importantes do século XX foi o debate do cálculo econômico no socialismo. O debate também foi extremamente importante para o próprio desenvolvimento da escola austríaca como uma escola de pensamento econômico consciente de suas diferenças em relação ao mainstream neoclássico. Antes do debate os três ramos de pensamento que se desenrolaram da revolução marginalista, Walrasiano, Mengeriano e os marginalistas ingleses eram considerados como basicamente a mesma coisa só que utilizando uma linguagem diferente para expor as mesma essência.
O debate se iniciou em 1920 quando Ludmig von Mises publicou o artigo Economic calculation in the socialist commonwealth, onde ele argumentou que como no socialismo a totalidade dos fatores de produção seriam de propriedade estatal não teríamos um mercado para os fatores de produção. Como não teríamos um mercado para os fatores de produção, não teríamos preços para esses fatores já que não teríamos compra a venda desses fatores pelo sistema econômico. Numa economia de mercado avançada a complexidade da divisão do trabalho é tão grande que cada indivíduo só pode se coordenar com os outros através da utilização do sistema de preços, para calcular custos e benefícios de suas escolhas. Sem preços para os fatores de produção não seria possível realizar o cálculo econômico de custos e benefícios para saber se uma certa alocação é eficiente, mesmo do ponto de vista de um planejador central. Logo o socialismo se tornaria cego e não poderia produzir alguma ordem na sociedade sem a ferramenta fundamental do cálculo econômico. O que significa que seria impossível a simples existência de uma sociedade avançada baseada na propriedade estatal dos meios de produção.
O modelo de Oscar Lange
Oscar Lange foi um economista polonês, socialista e neoclássico, que contra argumentou a teoria de Mises e posteriormente de Hayek. Atualmente a maioria dos economistas considera que sua refutação do problema do calculo econômico no socialismo foi bem sucedida e que o problema real do socialismo se encontra na falta de incentivos e nos altos custos de coleta e transmissão de informação para o orgão que realizaria o processo de planejamento.
O modelo de Lange foi baseado completamente no modelo Walrasiano de equilíbrio geral que vinha se desenvolvendo desde a década de 1870. Nesse modelo os preços são determinados a partir do leilão walrasiano: A casa de leilão walrasiana anuncia um preço X e os agentes reagem ao preço X anunciado suas ofertas e procuras a partir desse preço, se preferem comprar nesse preço do que vender vão demandar e o inverso se aplica a oferta. Se a oferta for maior do que a procura, a casa de leilão modifica seus planos e o preço X é reduzido e reanunciado no mercado. O processo continua até que a oferta se iguale a demanda em todos os mercados de todos os bens. Se isso ocorrer as transações são finalmente realizadas e o sistema entra num equilíbrio geral walrasiano. Como os preços igualam a oferta e a procura para todos os bens do mercado, o que significa que todos os agentes maximizam a utilidade a partir dos preços do mercado e não deixam de realizar nenhuma transação anunciada então todas as transações mutuamente benéficas possíveis são realizadas e dessa maneira temos uma situação ótima do ponto de vista da economia matemática.
Nesse modelo transações não podem ser realizadas se os preços anunciados produzirem uma situação onde a oferta seja diferente da procura porque essas transações nos preços falsos provocariam realocações possivelmente ineficientes no sistema econômico e mudariam os dados do mercado já que estão mudando a alocação dos bens, o que significa que os preços de equilíbrio geral mudariam e complicariam radicalmente o processo de leilão. Já que se compreendermos que continuamente transações em preços falsos seriam realizadas e continuamente os dados do mercado mudariam e o equilíbrio (estrutura de preços igualando oferta e procura) estaria em contínuo movimento enquanto não fosse atingido. Igualar a oferta e procura possivelmente se tornaria inatingível, dependendo da capacidade da casa de leilão de reajustar seus preços anunciados a uma velocidade maior do que a velocidade de movimento da constelação de preços de equilíbrio. Ou seja, se através das conseqüências dos preços falsos a casa de leilão descobrir a magnitude dos erros de antecipação da oferta e procura ela vai conseguir gerar tendências equilibrativas, que quanto mais rapidamente o processo de descoberta das magnitudes econômicas for, mais forte será a tendência equilibrativa e mais rapidamente a economia tenderá ao equilíbrio.
O modelo de socialismo de mercado proposto por Lange é basicamente o modelo de equilíbrio geral aplicado a realidade. O orgão de planejamento central faz o papel da casa de leilão walrasiana. Os agentes que tratam os preços como dados são os consumidores e as firmas. No socialismo as firmas seriam propriedade estatal e seus gerentes receberiam a ordem de igualar o preço, anunciado pelo comitê de planejamento central, ao custo marginal, para maximizar a eficiência. O comitê de planejamento central iria então realizar o processo de equilibrativo anunciado e reajustando os preços, até atingir a igualdade de oferta e procura e assim atingir o ponto alocativo ótimo.
O problema do conhecimento
O modelo de Lange não lidou com o problema básico que, segundo Mises, o sistema de preços resolve. Esse é o problema da informação ou conhecimento. Numa economia de mercado os preços transmitem informação espontaneamente. A informação transmitida é a informação necessária para os indivíduos se coordenarem mutuamente e produzir assim uma ordem espontânea no sistema econômico. O problema foi que na década de 20 Mises não desenvolveu a fundo seu argumento sobre a natureza do processo de mercado para explicar detalhadamente como que o mercado geraria os preços de equilíbrio que coordenariam as ações dos indivíduos. E devido a essa falha do mises em articular seus argumentos que os economistas neoclássicos falharam em compreender exatamente porque que o socialismo não poderia produzir preços.
A interpretação da maioria dos economistas atualmente sobre o problema do conhecimento é de que os preços servem como um meio barato de transmissão de informação. Um preço informa aos agentes sobre as preferências dos consumidores e sobre as disponibilidades dos fatores de produção sem que os agentes precisem pesquisar diretamente esses detalhes, economizando recursos na coleta de informações. Mas para esses economistas os preços só são completamente eficientes se corresponderem aos preços de equilíbrio competitivo, ou seja, aos preços estabelecidos num hipotético equilíbrio walrasiano. Nesse caso a informação transmitida pelo sistema de preços é totalmente correta e permite a perfeita coordenação das ações dos indivíduos. Se os preços não corresponderem aos preços de equilíbrio geral então os preços também falham, já que falham em transmitir informação eficientemente, transmitindo informações parcialmente incorretas. Logo o livre mercado também falharia em resolver o problema da informação dispersa perfeitamente. Como o planejamento central (sem ser o socialismo de mercado do Lange) exigiria enormes custos para coleta e transmissão da informação para o orgão central, ele não seria impossível como Mises afirmou, mas apenas grosseiramente ineficiente. Para o mainstream neoclássico o máximo de eficiência é atingido com um mercado regulado para que os preços correspondam aos preços que seriam estabelecidos num equilíbrio walrasiano.
Já para os socialistas de mercado como Oscar Lange, o socialismo de mercado seria o sistema ideal porque combinaria a eficiência de um sistema de preços para transmitir informação dispersa com a justiça “social” do socialismo e não sofreria dos problemas causados pelos monopólios e ciclos de negócios. Na verdade os argumentos de Mises e Hayek não foram compreendidos pelos economistas do mainstream e como conseqüência a escola austríaca descobriu que seu entendimento da natureza da economia era completamente diferente do entendimento dos outros economistas, que não viam o sistema econômico como uma constelação de mentes agindo propositadamente mas sim como um mundo de magnitudes que independem das percepções subjetivas dos indivíduos. Na parte 2 do texto vou explicar exatamente porque que o socialismo é impossível pela visão Mises-Hayek.