Celso Furtado: de keynesiano a pós-moderno ?
Economia

Celso Furtado: de keynesiano a pós-moderno ?



Celso Furtado, economista brasileiro usualmente classificado no campo da Economia de Desenvolvimento, faleceu recentemente. A triste ocorrência foi comentada em diversos jornais e blogs portugueses, mas com referências muitos vagas às suas formulações teóricas. Mera hagiografia.

Creio que Celso Furtado, apesar da riqueza analítica do seu trabalho, nunca produziu qualquer análise económica fora do quadro keynesiano, embora o tenha utilizado para elaborar uma séria crítica do capitalismo. Com a constatação da falência do keynesianismo, Celso Furtado - como tantos outros críticos do capitalismo - ficou sem instrumentos analíticos consistentes e refugiou-se numa filosofia crítica próxima dos actual pensamento estéril dos "pós-modernos".

A sua obra de 1956, "Formação económica do Brasil", que teve grande influência na "explicação" do Brasil, nomeadamente por parte dos próprios brasileiros até hoje, é uma obra essencialmente keynesiana; Celso Furtado "descobriu" no Brasil o equivalente daquela meia-anedota de que bastaria o contratar operários para abrir buracos e depois tapá-los para impulsionar a recuperação de uma crise. No caso brasileiro teria sido a política de "queimar café", sustentando uma produção que não se vendia. A política conjuntural permitiria manter os níveis de rendimento que financiaria a industrialização – tema este já desenvolvimentista.
"A diferença no Brasil [relativamente aos EUA nos anos 30, onde a baixa de preços do café produzia elevado desemprego] é que se mantinha o nível de emprego se bem que se tivesse de destruir o fruto da produção. O que importa ter em conta é que o valor do produto que se destruía era muito inferior ao montante do rendimento que se criava. Estávamos, na verdade, a construir as famosas pirâmides que anos depois preconizaria Keynes." ("Formação económica do Brasil")
A produção teórica de Celso Furtado centra-se depois na análise do Nordeste brasileiro, explicando o paradoxo de uma região que se mantinha estruturalmente pobre, fornecendo contingentes contínuos de mão-se-obra para o resto do país (os Severinos da obra teatral de João Cabral de Melo Neto, "Morte e Vida Severina"). Equivalente ao "equilíbrio abaixo do pleno-emprego" keynesiano, haveria um "equilíbrio do sertão" que impedia a industrialização. Esta análise conduz naturalmente ao dualismo (sectores e regiões modernas e industrializadas, coexistindo com modos de produção não-capitalistas, como a agricultura de subsistência).

Neste período Celso Furtado desempenhou funções oficiais no Nordeste Brasileiro, como primeiro responsável da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) tendo tido oportunidade de aplicar as suas ideias. Pouco conhecida (ou pouco citada) é a crítica que lhe foi feita por Gilberto Freyre, de ter então aplicado uma "política economicista" pondo "arbitrariamente em prática, contra o mais elementar humanismo científico e contra o mais elementar ecologismo, uma mecânica transferência de brasileiros do Nordeste árido para o Nordeste húmido - o Maranhão - sem preparar-se o migrante, oficialmente dirigido, para uma tão radical mudança de adaptação a ambiente. O fracasso não tardou a verificar-se."

Recentemente, aquando da refundação da Sudene por Lula da Silva, Furtado admitiu as limitações que enfrentara devido à carência de dados sobre a região, levando-o a suprir as lacunas "com boa dose de imaginação". Mas acrescentou, sobre a nova Sundene: "apesar do volume de informações à disposição, os seus autores também recorreram à imaginação para delinear o futuro do Nordeste".

Publica depois "Desenvolvimento de Subdesenvolvimento", onde começa a surgir a tese anti-revolução que o vai diferenciar dos marxistas. Celso Furtado aponta como caminho a seguir pelo Brasil as reformas de base, um programa económico-político apoiado na possibilidade do presidencialismo populista poder conduzir um programa de desenvolvimento nacionalista. O golpe militar de 1964 e a ditadura vieram outorgar uma 'dupla negação' a esta tese - interrompendo o percurso político e proporcionando desenvolvimento (algo equivalente ao que se passava em Portugal na mesma altura).

Através de obras como "Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina" Celso Furtado explica o bloqueamento do desenvolvimento pela importação de tecnologia, essencialmente capital-intensiva, que leva ao crescimento com concentração dos rendimentos. Trata-se ainda do efeito do multiplicador keynesiano mas, aqui, funcionando ao contrário (porque economizador de mão-de-obra) e impedindo uma solução de acordo com o modelo de Arthur Lewis.
"Devendo substituir produtos importados, o produtor interno é naturalmente levado a copiar as industrias com as quais pretende concorrer. Os equipamentos que adquire foram desenhados em função do estágio de desenvolvimento das economias mais avançadas: visam permitir uma grande poupança de mão-de-obra. Desta forma reproduz-se, agravado, no sector industrial, o quadro que diagnosticámos no sector exportador: todo o esforço visando elevar a produtividade tende a entorpecer a absorção do excedente estrutural de mão-de-obra". ("Teoria e política do desenvolvimento económico")
Mais tarde Celso Furtado começa a produzir obra de crescente componente filosófica, criticando no seu conjunto os pressupostos simplificadores, quer da economia clássica, quer do marxismo. Nenhum modelo económico poderia, só por si, explicar a realidade – ou ajudar a modificá-la:
"As duas dimensões do desenvolvimento – a económica e a cultural – não podem ser captadas senão em conjunto. Por uma questão de facilidade metodológica, o economista concentra a sua atenção nos aspectos mensuráveis do desenvolvimento. (….) a interacção do económico e do não-económico, que é seguramente o mais importante no processo de desenvolvimento, desaparece do campo de observação do economista. O que no começo era uma simplificação metodológica necessária, tende a transformar-se em obstáculo à propria percepção da natureza do problema."
(...)
"O ponto de partida do estudo do desenvolvimento deveria ser não a taxa de investimento, ou a relação capital-produto, ou a dimensão do mercado, mas sim o horizonte de aspirações da colectividade em questão." ("Um projecto para o Brasil", 1969)
Dir-se-ia que ser economista é, desde logo, um ponto de partida para o erro. Celso Furtado coloca em questão o próprio método científico, e leva de facto a sua crítica tão longe quanto os inícios galileanos do mesmo, posição de dúvida muito próxima dos "pós-modernos":
"A visão platónica do mundo adoptada por Galileu (…) vai predominar e de tal modo impor-se que todas as outras formas de conhecimento serão a seu lado desqualificadas: só o conhecimento científico será verdadeiro". ("Da economia para a filosofia" 1978)
Uma tão radical crítica ao pensamento científico (e económico) não pode deixar de colocar o investigador num situação de penúria teórica (tal como se um ecologista resolvesse passar a viver sem utilização de qualquer fonte de energia não-renovável).

Em 1989, na sua "breve Introdução ao desenvolvimento: uma abordagem interdisciplinar", critica abertamente as limitações dos fundamentos
keynesianos da teoria económica recente e dos diversos modelos de crescimento, pela sua "incapacidade de apreensão das transformações estruturais, quer dizer, a interação do económico com o não-económico".

Teorizando sobre o conceito de desenvolvimento, aponta-lhe três dimensões:
  • crescimento da eficácia do sistema social de produção
  • satisfação das necessidades elementares das populações
  • realização dos objectivos a que aspiram os grupos dominantes de uma sociedade e que rivalizam na utilização de recursos raros
  • Para imediatamente reconhecer que a esta última dimensão é "muito ambígua, pois aquilo a que aspira um grupo social pode parecer
    um mero desperdício de recursos pelos outros." Dir-se-ia que, sem o instrumental analítico-cientifico e sem uma análise de classes (marxista ou outra) que diga que tem "direito" a definir o que é justo, o economista engagé fica sem meios para trabalhar. Outros economistas (como Amartya Sen) têm tentado resolver esta questão da formação de consensos nas sociedades modernas, mas a melhor formulação deste problema ainda se deve a Ronald Coase.



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