"O" sobre "Real exchange rates, domestic and foreign savings: the missing link" de Gala & Rocha
Economia

"O" sobre "Real exchange rates, domestic and foreign savings: the missing link" de Gala & Rocha


Caro Rogério,

É um pouco difícil até julgar o paper que você sugeriu. Em minha opinião, o paper não chega nem a ser errado.

Vou tentar ser breve e cordato, provavelmente fracassarei no segundo item, como de hábito.

Os autores tentam demonstrar que um câmbio real depreciado aumenta a poupança doméstica. Para isso, apresentam um modelo e uma seção empírica. Ambos não passam qualquer controle mínimo de qualidade, pelos motivos que explico abaixo.

Como disse, os autores se propõem a escrever um modelo que explique a poupança doméstica. Mas, bizarramente, eles apresentaram um modelo em que: (1) a decisão de poupar não é modelada, mas sim gerada por uma premissa de que a poupança é uma proporção fixa da renda dos capitalistas; e (2) não existe um sistema de preços para bens ou fatores, portanto a renda dos capitalistas é determinada por um único fator (a taxa real de câmbio). Para completar a estranheza, eles concluem o modelo com a afirmação que "overvalued real exchange rates may result in consumer-led growth paths with current account deficits and lower saving levels" apesar do modelo não ter nada a dizer sobre a conta-corrente, e sua única previsão sobre os níveis da poupança é que esta aumenta quando o lucro dos capitalistas aumenta.

Mas essa é a parte apenas esquisita, e também a melhor parte do artigo. A seção empírica, oh a seção empírica...

Nesta seção, os autores tentam dialogar com o artigo de Servén e Montiel (SM). O primeiro elemento da comédia é que os autores não notaram que a Figura 1 de seu artigo é teoricamente a mesma figura que a Figura 2 do artigo de SM. Isto é, regredir a taxa de poupança na taxa real de câmbio e no nível de renda (SM) é a mesma coisa que regredir a taxa de poupança no resíduo de uma regressão da taxa real de câmbio no nível de renda (os autores).

O segundo ato salta aos olhos na Figura 1 dos autores (ver abaixo): como que eles chegaram a essa linha de regressão que aparentemente não tem nada a ver com a dispersão dos dados? Deve ser um daqueles pontos em que a ciência encontra sua intersecção com a arte.

Mas o creme no topo do pudim só é revelado ao final: uma regressão da taxa de poupança doméstica em um montão de variáver... inclusive a conta corrente, que por construção é igual a diferença entre a taxa de poupança e a taxa de investimento; e uma bacia cheia de outras variáveis endógenas. O que eu posso dizer disso? Não é surpresa alguma que os autores cheguem a um resultado diferente de SM. Seria surpreendente e uma demonstração que econometria correta é supérflua se o oposto acontecesse!

Finalmente, a conclusão é de fazer macambúzio o coração de qualquer economista procurando uma discussão séria e inteligente. Os autores montam um espantalho "some authors have argued that the Asian model cannot be implemented in Latin America ... low private savings levels... culturalist explanations" que não se parece com nenhum argumento que eu já li ou ouvi sobre o fenômeno das altas taxas de poupança na Ásia (aliás, SM tem uma resenha bem decente de explicações alternativas). Existe uma rica literatura que tenta explicar as altas taxas de poupança na Ásia, que oferece várias explicações (dinâmica demográfica, hábitos no consumo, motivo precaucional, ausência de sistemas nacionais de saúde ou de aposentadoria etc), mas os autores simplesmente fecham os olhos e fingem que não existe. Assim, todos pimpões, eles podem concluir que, sim, entre o espantalho que é "culturalista" e a explicação que eles propõem baseados em econometria crassa, fiquemos com a econometria crassa!

Mas pelo menos algum crédito os autores merecem: o inglês está quase perfeito! O artigo parece-me bem ajustado para um Cambridge Journal of Economics ou JPKE :)

E para quem ficou perdido, e para aqueles que acharem que meus comentários não são construtivos, recomendo o artigo do Montiel e Serven. A diferença é gritante na qualidade da econometria e da discussão teórica, além da discussão de SM ser mais eclética e apresentar muito mais idéias.

Um parêntese biográfico: SM são dois macroeconomistas da velha guarda, o primeiro, Servén, um dos maiores especialistas no mundo inteiro em poupança (se não me engano ele foi o coordenador de um projeto no Banco Mundial sobre poupança que durou vários anos e produziu o banco de dados que é o padrão-ouro na pesquisa sobre poupança em países); o segundo, Montiel, co-autor de um famoso manual de macroeconomia focado em países em desenvolvimento e dezenas de artigos. Mas por que estou descrevendo os autores supra-citados? É apenas para expor o tamanho do ridículo que os autores que provavelmente cozinharam um artigo rapidinho tentando atacar uma outra peça bem melhor escrita e que provavelmente foi resultado de pelo menos uns 15 anos de pesquisa sobre poupança. Em outras palavras, tenha bala na agulha, seja um gênio ou então faça que nem o "O" fez um dia e aprenda suas limitações e trabalhar duro. No começo dói um pouco, mas depois cria um calo e a gente acostuma.

Tio "O"





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