A Contradição do Liberalismo Clássico, ou: a falácia do estado mínimo
"A law of democratic government is that any group that gains power becomes part of the problem, not the solution".
Lew Rockwell Jr.
A idéia fundamental do liberalismo clássico, segundo um dos seus grandes expoentes, Ludwig von Mises, é o direito de propriedade privada. O livre mercado e a concorrência não são as reais essências do liberalismo, são elementos fundamentais, mas a posteriori ao pré-requisito da propriedade privada dos meios de produção.
O programa do liberalismo, se pudermos condensá-lo em uma única palavra, se resumiria no termo “propriedade privada”, isto é, a propriedade privada dos meios de produção [...] Todas as outras exigências do liberalismo resultam deste requisito fundamental (MISES, Ludwig von. Liberalismo segundo a tradição clássica).
Os teóricos do liberalismo mostram que uma sociedade calcada na propriedade privada dos meios de produção, no livre mercado e na liberdade individual, se apresenta como o meio mais eficaz de reduzir a nossa condição natural de pobreza e alavancar o progresso sustentado no padrão de vida das pessoas.
O teorema é o seguinte: a propriedade privada dos meios de produção e a liberdade econômica estimulam os indivíduos a empregar de maneira mais eficiente os escassos recursos econômicos. Neste sistema, o emprego dos recursos procura atender as necessidades mais urgentes dos consumidores, evitando, assim, o desperdício. É a soberania do consumidor que exerce o papel primordial na condução do emprego dos fatores de produção no sistema de livre mercado.
Este sistema, no entanto, não é infalível. Ele é tão perfeito quanto a imperfeição humana permitir. Mas é, ainda, o melhor meio de ordenamento econômico quando este busca o aumento da produção e do bem estar geral da população. Tanto do ponto de vista teórico quanto empírico, o livre mercado apresenta melhores resultados sociais do que qualquer outro sistema, seja ele o intervencionismo de corte keynesiano ou o socialismo marxista.
No entanto, o liberalismo clássico defende um papel ao Estado. Aqui a discussão que se estabelece é quanto a definição de Estado. Conforme Hans-Hermann Hoppe, o Estado é uma entidade que exerce o monopólio compulsório sobre um dado território. Hoppe chama a atenção de que o Estado é investido de dois poderes que o distinguem das instituições criadas no livre mercado: o poder de tributação e de jurisdição.
Sendo assim, o liberalismo clássico se caracteriza como um sistema relativamente intervencionista, pois a própria existência de uma entidade com poderes coercitivos pressupõe a necessidade de algum grau de intervenção sobre a sociedade. O Estado vive de impostos e impostos exercem restrição na liberdade econômica e individual. Portanto, embora o liberalismo clássico defenda a preponderância do livre mercado, ele reconhece que algum grau de intervenção deve ocorrer, pois o Estado tem de cumprir uma função na sociedade.
O poder de tributação implica, necessariamente, que uma das partes contratantes, no caso o Estado, tem o poder de estabelecer o preço e a qualidade do serviço prestado sem que a outra parte (o contribuinte) possa recusar as condições caso elas não lhe agradem. Se assumirmos que o Estado será o encarregado da segurança nacional, unicamente, como assegura a teoria liberal clássica, é ele quem determinará o preço do serviço, independente da manifestação da outra parte. Desta forma, evidencia-se que não são critérios econômicos de emprego dos escassos recursos que determinam o preço dos produtos (pois o consumidor não exerce poder), mas sim critérios arbitrários ou políticos, o que, em última instância, culminará no desperdício dos recursos econômicos. O mercado não opera na esfera estatal, é a política, com a sua intrínseca irracionalidade que vigora.
Igualmente, o poder de jurisdição, ou de última decisão em caso de conflito entre particulares, cabe ao Estado, exclusivamente. A cobrança por este serviço também será determinada arbitrária e coercitivamente por meio de impostos. Do ponto de vista do consumidor, todo monopólio é um mal, pois a garantia da não entrada de concorrentes no setor provoca uma queda constante na qualidade do serviço prestado e um aumento no preço do serviço. Além dessa perversa lógica de funcionamento do sistema que acaba por lesar os consumidores/contribuintes em prol dos burocratas, tem-se que independente se você usa ou não o serviço de jurisdição prestado pelo Estado, estará pagando por ele.
O sociólogo alemão Franz Oppenheimer em seu livro The State, citado por Rothbard em Anatomy of the State, define dois meios de se adquirir riqueza. Os meios econômicos e os meios políticos.
O primeiro meio se constitui no emprego de fatores de produção (terra, capital, trabalho, tempo) na produção de mercadorias e a subseqüente troca ou venda destes produtos no mercado. Esse procedimento sempre resulta num acréscimo da produção e, consequentemente, numa melhoria no padrão de vida. Outra característica inerente aos meios econômicos de obtenção da riqueza é que as trocas são realizadas de forma livre e voluntária no mercado.
Por outro lado, o outro meio de se adquirir riqueza é através da exploração, da confiscação e do roubo. Como visto acima, o Estado é, por definição, investido destes meios de obter riqueza. O poder por ele exercido de regular, tributar e confiscar a propriedade é o que Oppenheimer caracterizou de meios políticos de obter riqueza. O Estado nada produz e seu funcionamento não sendo submetido ao mercado, só pode adquirir riqueza através da subtração da riqueza alheia. Por meio do Estado, os meios políticos operam em sua plenitude.
O poder que os liberais clássicos atribuem ao Estado, mesmo que mínimo, carrega em si a fatalidade decorrente do poder de monopólio territorial, de tributação e jurisdição. O que do ponto de vista dos consumidores, é sempre um mal.
Uma vez que alguém esteja investido do poder de monopólio territorial, de tributação e jurisdição, não existe segurança alguma de que este alguém não expandirá cada vez mais o seu poder. Historicamente, verifica-se que as democracias modernas é um longo registro da expansão estatal. O Estado tem se apoderado do poder de emissão de moeda, gerando inflação e enormes déficits, comprometendo o bem estar das gerações futuras, além de inúmeras e cada vez mais intensas intervenções sobre os indivíduos nas mais diversas áreas (educação, saúde, segurança, moradia, agricultura, indústria, meio ambiente etc., etc.).
Em última análise, o liberalismo clássico, com sua idéia de um Estado Mínimo, se revela autocontraditório. Este sistema acaba por resultar no melhor caminho para o intervencionismo (no sentido amplo da palavra) e para o socialismo totalitário, onde o Estado exerce o poder absoluto e a propriedade privada desaparece.
Novamente, é a história do século XX que nos revela isto. Mas antes da evidência empírica do processo de expansão estatal, há a teoria pura que prevê este fenômeno. A teoria é dos libertários que negavam qualquer poder a um ente como Estado, com o monopólio territorial e com poder de tributação e jurisdição sobre este território. O Estado se constitui o detentor legal dos meios políticos de obter riqueza. O grande expoente do libertarianismo ou anarcocapitalismo no século XX foi Murray N. Rothbard e atualmente é Hans-Hermann Hoppe. O que ambos propõem como antídoto ao sistema intervencionista é a supremacia da propriedade privada dos meios de produção. É a negação dos meios políticos de adquirir riqueza e a opção pelos meios econômicos, voluntários e contratuais em toda a esfera do sistema.
Diante do exposto, constata-se que o liberalismo clássico ao conceder um papel ao Estado está dando a autorização de sua própria bancarrota em prol da supremacia dos meios políticos de subtração da riqueza. Contudo, este sistema tem um limite imposto pela natural escassez dos recursos. Ele chegará quando não restar mais nada para o Estado subtrair da sociedade já escravizada e esmorecida.
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Referências:
Hoppe, Hans-Hermann. Democracy: The God That Failed. Transaction Publish, 2001.
Hoppe, Hans-Hermann. The Ethics and Economics of Private Property. Disponível em: http://www.mises.org/fullstory.aspx?Id=1646
Kfouri, Miguel Gustavo Lopes. O Erro dos Liberais Clássicos. Disponível em: http://www.oindividuo.com/convidado/kfouri.htm
Mises, Ludwig von. Liberalismo segundo a tradição clássica. José Olympo: Instituto Liberal, 1987.
Rothbard, Murray N. The Anatomy of the State. Disponível em: http://www.mises.org/easaran/chap3.asp
Tostes, Marcello. Liberalismo Clássico: uma crítica. Disponível em: http://oindividuo.com/convidado/tostes10.htm
Tostes, Marcello. Estado, Contrato Social, Segurança e Bens Públicos. Disponível em: http://oindividuo.com/convidado/tostes9.htm