Economia



António Damásio

Lesões no cérebro geram escolhas morais anormais

     «A equipa do neurocientista António Damásio quis saber se as emoções são ou não essenciais ao funcionamento do nosso eu moral
     «a Você sabe que uma dada pessoa tem sida e que tenciona deliberadamente infectar outras. Algumas dessas pessoas irão com certeza morrer. As duas únicas opções que você tem são deixar que isso aconteça ou matar a pessoa. Você carrega no gatilho?
     «A mera hipótese de virmos a ser confrontados com uma escolha destas, mesmo que retoricamente, provoca-nos arrepios, tal é a nossa aversão natural à ideia de tirar a vida a outro ser humano. No entanto, há pessoas que respondem pela afirmativa quando este cenário imaginário lhes é colocado. E essas pessoas, que basicamente não hesitariam em obliterar uma vida humana "em nome do bem colectivo", apresentam lesões numa região do seu cérebro necessária à produção de emoções.
     «António Damásio, da Universidade da Califórnia do Sul (USC), Marc Hauser, especialista do comportamento animal da Universidade de Harvard, e os seus colegas quiseram saber o seguinte: perante um dilema moral deste género, será que os sentimentos que nos acossam são somente uma consequência do horror da situação evocada? Ou será, pelo contrário, graças ao nosso cérebro "emocional" que somos capazes de fazer a escolha moral mais humana - a menos utilitária e fria -, recusando-nos a entrar na pele de um homicida justiceiro?
     «Para Damásio, autor do célebre livro O Erro de Descartes, a razão humana precisa das emoções para funcionar: não há escolha racional acertada na vida real sem a participação das emoções, da intuição, das nossas vísceras. Quanto a Hauser, autor de um recente livro intitulado Moral Minds: How Nature Designed Our Universal Sense of Right and Wrong, tem estudado nos animais os comportamentos precursores dos comportamentos morais humanos.
     «Estes cientistas concluem hoje, num artigo publicado na revista Nature, que as emoções desempenham efectivamente um papel essencial no nosso desempenho moral. Sem elas, o nosso juízo moral não funciona. "O nosso trabalho fornece a primeira demonstração causal do papel das emoções nos juízos morais", diz Hauser, citado por um comunicado conjunto da USC, da Harvard e do Caltech.
     «Os investigadores apresentaram uma série de 13 dilemas morais deste tipo a 30 pessoas de ambos os sexos. Desses voluntários, seis tinham lesões no córtex prefrontal ventromedial (VMPC), 12 tinham outras lesões cerebrais e 12 não tinham lesões. O VMPC, situado ao nível da testa, faz parte dos circuitos "emocionais" do cérebro.
     «Embora o dilema referido mais acima não fizesse parte do conjunto sob essa forma, algumas das escolhas propostas eram talvez mais arrepiantes ainda. Por exemplo: "Soldados inimigos invadiram a sua aldeia. Você e outros refugiam-se num sótão [...] O seu bebé começa a chorar. [...] Você tapa-lhe a boca. [...] Para salvar a sua própria vida e a dos outros você precisa de matar o seu filho por asfixia. Você asfixiaria o seu bebé para salvar a sua própria vida e a dos outros?"
     «Também foi pedido aos participantes para responderem a outros tipos de dilemas - uma série de dilemas morais menos pessoais e uma série de dilemas sem componente moral. Mas foi apenas perante os dilemas morais em que a morte imediata de alguém serve para evitar a morte futura de muitos que as diferenças entre as pessoas com lesões no VMPC e as outras se tornaram gritantes, com uma proporção significativamente mais elevada de respostas afirmativas, neste grupo, à resolução dos dilemas pelas armas, por assim dizer.
     «"O que é absolutamente espantoso", acrescenta Hauser, "é a selectividade deste défice. As lesões do lóbulo frontal deixam intactas toda uma série de capacidades na resolução de problemas morais, mas afectam os juízos nos quais uma acção que provoca aversão é colocada em conflito directo com um desfecho fortemente utilitário". Por seu lado, Ralph Adolphs, do Caltech, explica: "Devido às suas lesões cerebrais, [as pessoas com lesões no VMPC] apresentam emoções anormais na vida real. Falta-lhes empatia e compaixão."»

Os humanos rejeitam o calculismo extremo

     «Os juízos morais que aliam a razão e a emoção reflectem uma sabedoria acumulada ao longo da evolução. Segundo o neurologista António Damásio, co-autor do estudo hoje publicado pela revista britânica Nature, este tipo de trabalho também tem implicações na área da filosofia. Damásio acha que, hoje em dia, existem ferramentas científicas que deverão permitir testar a validade de diversos sistemas filosóficos e crenças tradicionais.
     «Em particular, o investigador põe em causa a filosofia kantiana e a sua visão da racionalidade, inclinando-se a pensar que as provas científicas de que já dispomos tendem, pelo contrário, a confirmar as ideias de David Hume, filósofo do século XVIII cuja ética tinha por base as emoções.
     «O PÚBLICO pediu ao cientista português radicado nos Estados Unidos, onde dirige o Instituto do Cérebro e da Criatividade na Universidade da Califórnia do Sul, para comentar os resultados da sua investigação.
     «Pensa que, com base no tipo de trabalho que desenvolve, as neurociências serão capazes de dizer qual dos dois filósofos - Hume e Kant - tinha razão na sua visão do funcionamento do raciocínio humano?
     «Penso. E a resposta será que ambos tinham razão, em função das circunstâncias. Mas no plano geral, Hume está mais próximo da minha visão dos seres humanos - embora não totalmente.
     «Pode-se dizer que os resultados que obtiveram agora mostram que os seres humanos não são biologicamente aptos a terem raciocínios puramente utilitários?
     «Efectivamente, o nosso estudo sugere que os humanos rejeitam as formas extremas de calculismo utilitário. Essa rejeição está ligada à produção de emoções sociais. Penso que esta forma mista de juízo moral, que alia a razão à emoção, é a manifestação de uma sabedoria lentamente acumulada ao longo da evolução (tanto biológica como cultural). Os juízos mais simples não exigem esta combinação, sendo possível lidar com eles ou somente com a razão ou somente com reacções emocionais.
     «À luz deste estudo, o que dizer de personagens excepcionalmente impiedosas como Estaline, Hitler ou Mao, que não hesitavam em massacrar milhões de pessoas em nome de um suposto "bem-estar colectivo"? É possível que tenham sofrido de alguma lesão cerebral?
     «Não é preciso ter uma lesão cerebral para se comportar impiedosamente. Penso que na sua maioria, os déspotas são provavelmente deficientes emocionais e até é possível que os factores biológicos desempenhem efectivamente algum papel. Mas uma "disfunção cerebral" pode existir sem que haja uma "lesão cerebral" clara. A melhor maneira de descrever estas personagens despóticas é dizer que se trata de psicopatas narcisistas, que tentam alcançar altas recompensas através da sua brutalidade.
     «A sua colaboração neste estudo com Marc Hauser, um especialista do comportamento animal, pode parecer insólita. Será que os animais possuem algum instinto moral? Que conseguem distinguir o bem do mal?
     «Os animais complexos, como os chimpanzés, apresentam comportamentos que são precursores das emoções sociais e, portanto, de certas regras morais simples. Por exemplo, ajudam os outros, quando estes estão em apuros, o que constitui um comportamento de compaixão.»

Ana Gerschenfeld, jornal Público




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